Cada cultura tem, portanto, o seu modo peculiar de extinguir-se
espiritualmente, e esse modo, consequência absolutamente inevitável de toda a
sua vida, só pode ser um único. Por isso são o Budismo, o Estoicismo e o
Socialismo fenômenos finais, que se equivalem morfologicamente.
Isso aplica também ao Budismo, cujo o último sentido sempre
foi interpretado erroneamente em tempos anteriores. Ele não é um movimento
puritano, como, por exemplo, o Islã e o Jansenismo; não é uma reforma, tal como
foi a corrente dionisíaca em oposição ao apolinismo; não é nenhuma religião
nova, e nem sequer pode ser considerado como religião do gênero dos Vedas e dos
ensinamentos do apóstolo São Paulo. É o sentimento básico da civilização
indiana e, por essa razão, “contemporâneo” com o Estoicismo ou o Socialismo, e
equivalente a eles. A quintessência dessa mentalidade totalmente profana, nada
metafísica, encontra-se na célebre prédica de Benares, sobre as “quatro
sagradas verdades do sofrimento”, por meio das quais o príncipe-filósofo
conquistou seus primeiros adeptos. As raízes de tal concepção acham-se na
filosofia racionalista, ateia, de Sankhya, cuja atitude em face do mundo é
tacitamente pressuposta; assim como a ética social do século XIX tem sua origem
no sensualismo e no materialismo do século XVIII, e a Stoa procede de
Protágoras e dos sofistas, em que pese a sua exploração superficial de
Heráclito. Em todos esses casos, a onipotência da razão é o ponto de partida da
reflexão moral. Não se fala de religião, se é que por religião se entende a fé
em certos assuntos metafísicos. Não há nada mais estranho à religião do que
esses sistemas, em sua forma original. Não nos referimos neste ponto às modificações
que eles sofreram nas fases posteriores da sua respectiva civilização.
Deparamos com três tipos de niilismo, usando o termo no
sentido que lhe conferia Nietzsche. Os ideias de ontem, as formas religiosas, artísticas,
politicas, desenvolvidas no curso de vários séculos, acham-se abolidos. Mas até
mesmo esse último ato da Cultura, a de negação de si própria, expressa mais uma
vez o símbolo primordial de toda sua existência.
O niilista faustiano – Ibsen tanto como Nietzsche, Marx
tanto como Wagner – destrói os ideiais; o niilista apolíneo – Epicuro tanto
como Antístenes e Zenão – permite que eles desmoronem ante seus olhos; o
indiano afasta-se deles, a fim de recolher-se a si mesmo. O Estoicismo tem em
mira o comportamento do indivíduo, uma realidade estatuária, puramente atual,
sem relação nem com o passado nem com o futuro nem com outras pessoas. O
Socialismo trata o mesmo tema de maneira dinâmica: a mesma defesa referida, não
a atitude, mas aos efeitos da vida, porém com poderosa tendência agressiva,
rumo a regiões distantes, apontando para o futuro e dirigindo-se à totalidade
dos homens, que deve ser submetida a um único método. O Budismo – que somente
um diletante da pesquisa religiosa comparará com o Cristianismo – quase que não
pode ser definido pelo vocabulário das línguas ocidentais. É, todavia, lícito
falar de um nirvana estoico, mencionando a personalidade de Diógenes. Também
cabe estabelecer o conceito de nirvana de um socialista, tendo-se em mira a
fuga da luta pela vida, que a Europa cansada procura disfarçar pelas palavras
de paz mundial, humanismo e fraternidade entre os homens. Mas nada disso chega
as misteriosas profundezas do nirvana budista.
Toda alma tem religião. Religião é apenas outra palavra
suscetível de expressar sua existência. Todas as formas vivas nas quais a alma
se manifesta, todas as artes, as doutrinas, os costumes, todos os mundos de
formas metafísicas e matemáticas, cada ornamento, cada coluna, cada verso, cada
ideia são, no seu âmago, religiões e têm de sê-lo. A certo momento, porém, já
não pode ser assim. A essência de toda cultura é religião; por conseguinte, a essência
de toda a civilização é a irreligião. Basta confrontar as próprias metrópoles
com as velhas cidades cultas – Alexandria com Atenas, Paris com Bruges, Berlim
com Nuremberg – para verificar que elas são irreligiosas (o que não se confunda
com “antirreligiosas”), em todas suas peculiaridades, desde o aspecto das suas
ruas até o linguajar e a expressão seca, inteligente, das fisionomias.
Irreligiosas, desprovidas de alma são, por essa mesma razão, também essas
emoções éticas universais, cosmopolitas. A extinção da religiosidade íntima,
viva, que aos poucos se estende por todos os setores da realidade, inclusive os
mais insignificantes, tomando conta deles, é o que caracteriza no panorama
histórico a transição da Cultura para a Civilização. É o climatério da cultura,
para repetir um termo que já usei em outra ocasião. É o crepúsculo de uma era,
que tem lugar, quando a fecundidade psíquica de um grupo de homens se esgotou
para sempre a construção substitui o ato de gerar.
Oswald Spengler, em "A Decadência do Ocidente"
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