Giovanni di Paolo - The Creation of the World and the Expulsion from Paradise |
Na alma decaída, no entanto - a alma condicionada por e
identificada com o ego - o Intelecto espiritual é vendado; consequentemente,
esta hierarquia é invertida. As afeições são agora atraídas para objetos
inadequados (um estado simbolizado na Gênesis por Eva comendo fruto proibido)
sem levar em conta o que a mente racional - em seu estado decaído - direciona;
a vontade segue estas afeições rebeldes intencionalmente e aprovando o que elas
sugerem (simbolizado oferta do fruto proibido
para Adão, que também comeu); e a mente racional (algo como a serpente
no jardim) é pressionada a serviço da vontade, tanto para sugerir várias formas
e métodos pelos quais poderia transgredir, como para justificar e racionalizar
essas transgressões.
Assim, a alma caída, ou a dependência de um determinado
vício, é hierarquizado (em ordem decrescente) como Afetos / Vontade /
Racionalidade; A sugestão afetiva/sensual para o pecado aparece como um impulso
que é imediatamente atendido, muitas vezes em quase completa inconsciência. A
tentação para pecar, por outro lado, não quando impulsivamente cedemos a ela,
mas quando pelo menos resistimos inicialmente (já que se nós não resistíssemos ao impulso,
nós não reconheceríamos como uma tentação), é hierarquizado como
Afeições/Racionalidade/Vontade: a sugestão primeiramente aparece para as
afeições, e em seguida é "entretida" pela mente racional que irá
produzir argumentos a favor ou contra, e finalmente - a não ser que a tentação seja
impedida com êxito - é promulgada pela vontade, seja mentalmente ou
fisicamente. A culpabilidade cármica só surge quando a ação entra na terceira
fase; somente a vontade pode pecar.
Mas o que exatamente é este "ego" que define a
alma "caída"? O ego, no sentido em que estou usando o termo, não é a
personalidade consciente de Freud e Jung, mas sim, o nosso apego obsessivo pela
auto-definição, que é inseparável do nosso ato de definir quem são as outras
pessoas e o que é o mundo. Quando a presença e providência de Deus estão
encoberta para nós, a auto-definição se torna obsessiva e fixa; começamos a
acreditar - inconscientemente, mas mesmo assim de forma eficaz - que somos
autocriados; consequentemente, torna-se impossível para nós vermos que Deus
está continuamente recriando nós e o mundo em que vivemos, e, assim, deixamos
de apreciar a singularidade de cada momento. Perdemos a capacidade de deixar o
mundo e as outras pessoas se revelem para nós, e nem mesmo estamos interessados
em aprender algo novo ou surpreendente sobre nós mesmos. A vida fica estagnada,
e nós voltamos para as várias paixões, como a luxúria, avareza e a ira, em uma
tentativa auto-destrutiva para superar essa estagnação. Além disso, o
conhecimento e experiência, que estão necessariamente excluídos pelas nossas
definições fixas do eu e do mundo começam a formar uma grande "mente
inconsciente" - a inconsciência sendo simplesmente todas as coisas sobre
nós mesmos e o mundo, e aos mundos superiores, que não queremos estar
consciente, individual ou coletivamente, porque não queremos estar consciente
de Deus. A prescrição de Platão para lidar com esse "inconsciente" foi
a anamnese - a "recordação" (ou, mais literalmente, "a
não-não-recordação"). Todo conhecimento está virtualmente presente em nós;
a necessidade para atualiza-lo, para retornar ao que conhecíamos antes do
"descuido", é o que os muçulmanos chamam de ghaflah, que nos expulsou
do Paraíso.
Além disso, o conhecimento e a experiência excluída pelo ego
é, paradoxalmente, inseparável do ego, sendo uma parte dele; encontra-se no
sinal obsessivo da auto-definição. O ego é como um iceberg, uma parte
consciente relativamente pequena no ápice e uma grande base do inconsciente. E
já que é impossível de assumir responsabilidade por coisas que estamos
inconscientes, e conscientemente colocamos nas mãos de Deus, nosso inconsciente
se torna caótico e indisciplinado; ele aparece como um domínio das paixões. A
psicologia Sufi chama esse ego inconsciente (comparável em alguns aspectos, de
acordo com o professor Sufi Javad Nurbakhsh, ao id freudiano) de nafs
al-Ammara, a "alma comandando para o mal". Se a mente racional for
cortada do Intelecto, se as afeições governarem a vontade, e a vontade domina a
mente racional em vez de servi-la, isso se dá inteiramente devido ao fato de
que a nossa obsessiva auto-definição relega a maior parte da nossa psique, e
maioria de nossa experiência potencial tanto deste mundo material como os
mundos superiores sutis, à esfera inconsciente. Cada psicopatologia de qualquer
que seja (excluindo, claro, aquelas condições, obviamente baseadas em causas
físicas) em última instância, nasce do fato de que o ego, e não o Espírito de
Deus, tomou posse do centro da psique humana, o coração espiritual. O fato de
que esta ou aquela doença mental é refletida na fisiologia e química do cérebro
também não prova que a fisiologia e a química do cérebro são necessariamente as
causas da mesma. Quando estamos assustado por um evento interior ou exterior -
a visão de um acidente de automóvel, por exemplo – faz a frequência de
batimentos cardíacos aumentar. Será que isso significa que o nosso aumento na
frequência cardíaca realmente causou o acidente de automóvel?
Assim, a inversão da hierarquia das faculdades psíquicas e
nossa servidão ao ego são duas maneiras de falar sobre a mesma condição. Nós
falamos da alma "caída" - mas quanto exatamente ela "caiu"?
Já houve um "tempo", quando as faculdades da alma não estavam
invertidas, pelo menos em parte, onde não havia "inconsciente"?
Falamos, mais ou menos em termos míticos, da Idade de Ouro ou o Jardim do Éden;
e idealizamos (ou pelo menos nós costumávamos) o paraíso da infância e / ou a
"experiência oceânica" da vida no útero. Mas o fato é que, de acordo
com a nossa noção de tempo linear, nenhum paraíso perdido está em evidência. A
auto-definição obsessiva era um problema menor em nossa infância, mas a nossa
capacidade de tomar decisões racionais, controlar nossos impulsos e
conscientemente submeter nossas vidas a Deus também era menos desenvolvida (se,
de fato, tiver melhorado até agora!) Então, somos forçados a concluir que, se
há de fato houve uma "queda", foi uma queda da eternidade para o
tempo, não necessariamente uma queda de um momento anterior e melhor. Em Deus
todos nós estávamos perfeitamente, na forma como Ele nos conhecia e nos criou
para ser; e considerando que a eternidade é um aspecto de Deus, todos nós estamos,
em certo sentido, lá. Mas quando o tempo sobreveio - quando, devido à natureza
excludente da nossa obsessiva auto-definição fez a experiência deixar de ser
global e, fazendo-se parcial, necessariamente também se tornou sequencial
(assim como uma sala escura, depois do pôr do sol, já não se pode mais ver tudo
de uma vez, somente como sequencias parciais de pontos de vista de acordo para
onde nós fixamos nossa lanterna), a alma caiu; a hierarquia adequada das
faculdades psíquicas se inverteu. "Quando", ou mesmo "como"
isso aconteceu pode vir a cair sob as perguntas que o Buda classificou como
"tendendo a não edificação": a verdadeira questão é, não como
entramos nessa prisão, mas como podemos sair novamente. A resposta a essa
pergunta é o caminho espiritual, a expressão por excelência da
"misericórdia especial" de Deus, al-Rahim, no curso desta caminhada,
todas as perguntas necessárias serão respondidas, enquanto que todas as
perguntas desnecessárias e estéreis serão alegremente esquecidas.
Nos primeiros estágios do caminho espiritual - aqueles
conhecidos como "os mistérios menores" - o objetivo é devolver a alma
à sua natureza original, como Deus a criou, assim, restabelecer a sua
hierarquia própria, onde a mente racional obedece ao intelecto, a vontade obedece
à mente racional, e as afeições obedecem à vontade. A alma é
"edificada", construída como um edifício sólido, com uma ampla base
de caráter forte apoiando o "pináculo" da consciência exaltada. Essa
edificação representa o re-ordenamento da alma em seu modo ativo, o retorno de
sua capacidade de agir em consonância com os princípios espirituais. A alma
humana também é capaz, no entanto, de operar em modo receptivo - como no caso
da memória, por exemplo, assim como na imaginação ativa ou objetiva, que está
em polos opostos da fantasia subjetiva. Quando as afeições são receptivas, elas
recuperam a capacidade de refletir o Intelecto diretamente, sem a mediação de
qualquer mente racional ou vontade individual - uma capacidade que define todo
o aspecto imaginário da contemplação espiritual, bem como a contemplação da
beleza espiritual na natureza, na arte e no corpo humano. Quando a vontade é
pacificada mediante a obediência à mente racional, e a mente racional é
corretamente reorientada obedecendo ao intelecto espiritual, a turbulência das
afeições desaparecem, até que a substância emocional torna-se como um lago
imóvel em um dia sem vento, capaz de refletir o sol, não como uma grande
quantidade de pontos de luz separados e efêmeros, mas de uma forma unificada.
A mente racional, a vontade e os afetos são as três
faculdades principais da psique humana. A psique, no entanto, é também sede de
várias faculdades de composição. A principal delas é a memória e a imaginação,
ambas assumem três formas diferentes: passiva, ativa e transcendentais, que
estão relacionados com as três gunas ou modos de Prakriti (Substância
universal) no Hinduísmo: tamas, rajas e sattwa. A imaginação ativa pode ser
dividida em modos introvertidos e extrovertidos.
Na memória passiva, a ação é hierarquizada Afeições /
Vontade / Racionalidade, diretamente linha da condição da alma decaída. As
afeições sugerem uma impressão, a vontade segue imediatamente, e então o
pensamento elabora. A memória passiva - devaneio nostálgico - é, em última análise,
baseada na atração das afeições a forma sutil da natureza material, mediante ao
anseio de voltar à nossa "mãe", nossas origens maternas no mundo
natural, para além do conhecimento da mente racional e a resolução da vontade.
(As pessoas viciadas na memória passiva verão toda a vida, mesmo sendo uma
experiência humana, como um processo de "fazer memória"). Essa
memória se torna quase necessária como uma "atividade recreativa"
para a alma devorada pela obstinação racional da vida moderna, baseada na
escravidão da mente racional à vontade, segundo a qual a alma está sempre
tentando colocar as afeições em trabalho para abastecer esta ou aquela
obsessão. A poesia crepuscular e putrescente de Georg Trakl é a expressão
quintessencial desse estado. De certa forma pode ser vista uma vingança sutil
dos afetos reprimidos sobre a obstinação que os reprime. A nossa natureza
emocional, cansada de ser explorada e drenada por nossas ambições e obsessões,
enfraquece-os periodicamente "desligando" a nossa racionalidade e
vontade - mas como René Guénon apontou, o "sentimentalismo burguês"
nada mais é que a face oposta do voluntarismo burguês racionalista. E na medida
em que a memória passiva é apenas um recuar para "Este Mundo" como
uma matriz projetiva (por mais que nós possamos inconscientemente temer este
Mundo), ela destrói progressivamente a virtude da vigilância que faz a
contemplação das realidades eternas possível. Essa busca inconsciente por
segurança, ou por inconsciência como segurança, juntamente com os vícios de
curiosidade e ambição cruel, é o que define a conquista da alma pelo poder de
"deste mundo", o sistema coletivo de egoísmo e ilusão. É melhor se
relacionar com o mundo natural através do trabalho, ou mesmo através de perigo,
do que tomá-lo como uma espécie de resort de férias; se entendermos o mundo
natural como rigoroso, assim como belo, então ele não se tornará para nós
"as trevas deste mundo" (a escuridão imposta pelo complexo Ego /
Mundo, porque não querem que nós observe ou acredite em nada além de seu
horizonte ou fora do seu controle) mas sim o conjunto de Nomes e Sinais de
Allah - um suporte para a contemplação, e não seu substituto.
Quando William Blake disse "A Memória é a Morte
Eterna", ele estava se referindo a memória passiva. A existência governada
pelo tempo e devir sempre está falecendo em Hades, no reino dos fantasmas; a condescendência
com tal fantasmagoria nos faz moribundos, quase transformando nossas almas nos
próprios fantasmas, mesmo antes da morte física, garantindo que nós deixaremos
grande parte da nossa realidade humana para trás, na forma fantasmagórica.
Tampouco a memória passiva realmente é livre da racionalidade intencional só
porque tem o poder de separar-se temporariamente dela; ela permanece ligada à
racionalidade voluntarista, assim como a sombra está vinculado ao objeto
sólido. Como tal, ela permanece sob a hierarquia invertida de Afeições /
Vontade / Racionalidade que caracteriza a alma caída em si. O estado da memória passiva é bem analisada por William
Blake em seu poema Tiriel.
Dependendo se nossas lembranças são agradáveis ou
desagradáveis, a memória passiva irá chamar sentimentos nostálgicos por um
lado, ou de arrependimento e / ou repulsa por outro. E a memória passiva, seja
agradável ou desagradável, é a expressão emocional do estado da alma
caracterizado por Kierkegaard, em O Desespero Humano, como "desespero da
necessidade", não aquele desespero em que a necessidade é ausente, mas
aquela necessidade, não em termos eternos como o Ser Necessário, mas no
temporal como o destino irrevogável, é a base do nosso desespero. Ambas as
lembranças agradáveis e desagradáveis, quando estão sob o poder da memória
passiva, geram desespero; a expressão poética clássica do reconhecimento
consciente de tal desespero (que, embora muito doloroso, também pode
representar uma chance real para acordar, para começar nossa luta pela
liberdade) está no poema de Francis Thompson A Cidade da Noite Terrível.
A memória ativa é algo mais elevado que a memória passiva. É
o uso intencional da mente racional para acessar este ou aquele item de
informação factual (informação verdadeira, não de fantasia), empregando as
afeições, colocando em uso seu poder de simpatia. A memória ativa é
hierarquizada Vontade / Afeições / Racionalidade: a intenção de lembrar algo
emprega as afeições como seu "motor de busca", depois da qual a mente
racional corrige os resultados com o saber consciente. A memória ativa
representa, portanto, uma reparação parcial da condição caída da alma, que é
hierarquizada Afeições / Vontade / Racionalidade; é um passo em direção a
edificação.
Em busca do passado, a memória ativa não procura por
potenciais, mas por fatos, por coisas que já foram realizadas;
consequentemente, ela está operando, de modo imperfeito, mas válido, no reino
do Ser Necessário. Na medida em que os fatos habitam no passado, eles estão
separados da ordem metafísica, que subsiste no eterno presente; mas na medida
em que são realidades, e não meras possibilidades ou potenciais, eles
participam desse reino - uma vez que, de acordo com os filósofos escolásticos,
Deus é tanto Ser Necessário e Ato Puro. De forma que quando a história acabada,
ela está concluída; na medida em que está concluída, ela está perfeita. Já não
está sujeita ao devir. Assim, a compreensão de eventos passados é uma
abordagem real da intuição da eternidade, no sentido metafísico. E isso é ainda
mais verdadeiro no estudo das leis físicas e axiomas matemáticos, que são os
mesmos em todos os lugares e tempos; é por isso que Platão considerava o estudo
da matemática como o melhor caminho preparatório para o entendimento da
metafísica.
A memória transcendental se baseia em realidades situadas
além da hierarquia das faculdades psíquicas; ela pode ser vista como a oitava
superior da memória ativa. Em termos do caminho espiritual, a memória
transcendental possui uma função mais elevada do que a busca de fatos objetivos
- que é, no entanto, um bom treinamento preparatório para ela, uma vez que a
essência do caminho é superar subjetividade egóica e alcançar a Verdade
Objetiva. Na terminologia tradicional aplicável ao caminho espiritual, a
memória transcendental é a recordação, cuja forma mais elevada é a lembrança de
Deus (dhikr; japam; Mnimi Theou). Lembrar a Deus é reconhecê-Lo como o Único
Absoluto e Fato Todo-abrangente, do qual todos os outros fatos são meros
reflexos - é por isso que os verdadeiros fatos de qualquer situação, passado ou
presente, são um modo da presença real de Deus ali. A lembrança de Deus é
"memória" no sentido de que ela lembra, ou chama de volta, uma
realidade esquecida; esquecida, no entanto, não no passado, mas (ou debaixo) no
presente. A memória que estamos buscando terá como conteúdo algum evento
passado, mas a verdadeira forma dela já se situa abaixo da superfície da
consciência, neste exato momento.
A lembrança de Deus invoca a pré-eternidade, que é muitas
vezes sentida como uma nostalgia de um paraíso perdido - não o paraíso natural
da memória passiva, mas o paraíso celestial da forma humana Eterna. Lembrar que
estávamos uma vez unidos a Deus na pré-eternidade é começar a lembrar que a
pré-eternidade não é se situa fundamentalmente no passado, mas no presente.
Deus está aqui; A eternidade é agora. (Os cabalistas dizem: "o que está
aqui está em outro lugar, o que não está aqui, está em lugar algum" Isso
pode ser parafraseado, em termos temporais, ao invés de espaciais, como:
"O que é real agora sempre foi e sempre será real; o que não é real agora
nunca vai ser, e nunca foi ". À luz disto, a procura "alquímica"
de William Blake "o que pode ser destruído, deve ser destruído!", faz
todo o sentido).
Na medida em que reconhecemos Deus como presente neste
momento, começamos o processo de "retirada de projeções". Projeção é
a tendência de falsamente ver a si mesmo como ser em alguma coisa, pessoa ou
situação no mundo exterior, ou no mundo como todo. Mas uma vez que Deus é
infinito e absoluto, e uma vez que "o reino dos céus está dentro de
ti", a realização de Sua presença corta todos os laços com a memória e a
expectativa; o que tem sido, é agora, e assim o passado é apagado - como
passado, isto é - não esquecendo, mas lembrando, dado que todas as coisas estão
presentes em Deus. Além disso, o que será já está aqui, de modo que o futuro
também é obliterado: tudo o que poderia ser desejado (pelo coração) ou temido
(pelo ego) está aqui na Presença Única.
A lembrança de Deus, portanto, afeta a lembrança da forma
humana. O ser humano imerso no devir, ligado à roda do nascimento e morte, é
desmembrado, não espacialmente, mas temporalmente; o desmembramento de Osíris e
sua reconstituição por Ísis é um símbolo desta condição. Ele deixa o passado coberto de sua
experiência, o futuro cheio de sua intenção. Mas, quando a presença de Deus é
recordada no momento presente, e essa lembrança é estabilizada, então os
membros dispersos do memorial, magicamente remontam-se, como os ossos secos da
visão de Ezequiel; nas palavras de Rumi (dirigida a Deus) de uma das suas
quadras, "Quando Você voltar, tudo retorna." O desapego do passado e
do futuro, quando este é o lugar onde a maior parte da nossa identidade é
posta, é experimentada como a aniquilação, a Fana Sufi. E o retorno das nossas
auto-projeções psíquicas do passado e futuro, quando completo, é experimentada
como o Baqa Sufi, a subsistência em Deus -
subsistência como a forma humana integral residente no eterno presente,
a essa realidade os sufis chamam de al-insan al-Kamil, o Homem Perfeito. O retorno
dessas projeções é legitimamente simbolizado pela ressurreição dos mortos -
nesse ponto, nas palavras de Blake, "Filhas de Memória [Musas] tornam-se
as Filhas da inspiração". Este é o
reino do Tantra, a dimensão em que as nossas paixões e obscuridades (os nossos
medos e desejos, nossos afastamentos e anseios, nossas projeções), em vez de
serem suprimidos ou cortados, passam por uma metanoia, até que eles se revelam
como a própria substância da manifestação universal de Deus, que é igualmente o
Shakti ou Poder de Atenção pelo qual nós contemplamos.
Quando a memória ativa culmina na lembrança de Deus e a
memória passiva é superada, o desejo nostálgico e / ou a repulsa da memória
passiva são transformados em gratidão - gratidão pela misericórdia de Deus. E
esta transformação ocorre, precisamente, por intermédio do desgosto. Desgosto é
uma das sensações mais desagradáveis que podemos experimentar, mas também é
um dos sinais mais esperançosos da catarse, da purificação espiritual.
Imaginação passiva, como a memória passiva, é hierarquizada
Afeições / Vontade / Racionalidade; seu outro nome é "fantasia".
(Aqui, podemos ver como as paixões da alma decaída estão diretamente
relacionadas com a passividade e, portanto, quão deliberada, uma ação de
princípios, embora possa ter certas consequências negativas, ainda é um
verdadeiro passo para a redenção.) Nossas afeições são atraídos por este ou
aquele conjunto de impressões dentro do reino sutil; nossa vontade é apropriado
por eles e se envolve com eles; nossa mente pensante (em grande parte mediada
pelo discurso inconsciente) desenvolve-os, forma-os em imagens articuladas; é
isto que é fantasiar. Imaginação passiva é como a memória passiva exceto que
essa lida com as coisas que nunca existiram no mundo material, e pode nunca vir
a este mundo - como possibilidades, isto é, não como necessidades.
Imaginação passiva tem a ver não com fatos, mas com
potenciais. Talvez nunca tenhamos a intenção de trazer esses potenciais para o
mundo real, optando desfruta-los como se fossem um mundo em si, ainda assim
estão sempre pressionando por uma encarnação, e são fantasias de luxúria ou
raiva que nos conduzem frequentemente a ações luxuriosas ou violentas. E se nós
desfrutarmos dos potenciais que nunca pretendemos realizar, nossas vidas se
tornam irreais; assim, a imaginação passiva, pode ser comparada, com precisão,
a sexualidade quando divorciada tanto da reprodução como da contemplação, os quais
representam a realização das potencialidades inerentes a ela. (A resistência da
imaginação passiva à realização concreta de potenciais é analisada por William
Blake em O Livro de Thel.)
Imaginação passiva,
uma vez que tem a ver com o Ser Possível em vez do Ser Necessário, existe em um
nível ontológico inferior a memória passiva. Ela evita a realidade, tanto
prática como metafísica, e, portanto, tende a substituí-la. É um parasita da
realidade. Ela pode dar uma sensação de que muito é possível, que a nossa vida
e alma são tão ricas em potencial que se pode usar seu precioso tempo na
concretização deste potencial, uma vez que é praticamente imortal. As
desvantagens desta ilusão são analisados na peça japonesa Nō Kantan e na
canção de Simon e Garfunkel "Hazy Shade of Winter".
Imaginação passiva, claro, também está sujeita a pesadelos,
à apreensão dos potenciais negativos; sendo rica, convida-nos para contemplar
aquilo que gostaríamos de ver acontecer, ou apenas ver, assim ela se encontra
inseparável da temorosa contemplação daquilo que temos medo que possa
acontecer, ou o aquilo que estávamos com medo de nunca testemunhar, mesmo no
nível imaginário. A irresponsabilidade que alimenta a imaginação passiva
positiva é sempre eventualmente compensada pela insegurança rastejante que
convida a imaginação passiva negativa; se não estamos cumprindo nossos deveres,
podemos legitimamente temer que a vida vai nos dar um sério golpe. A imaginação
passiva (especialmente em sua forma positiva) é analisada por Kierkegaard em O
Desespero Humano como "desespero da possibilidade" - e não o
desespero do impossível (o que seria o "desespero da necessidade"),
mas o desespero que se esconde na fantasia da própria possibilidade. No entanto, o desespero da necessidade, muitas
vezes subjaz desespero da possibilidade. A falsa esperança que costuma dizer
"tudo é possível!", enquanto não toma sequer o primeiro passo para
realizar tal possibilidade à mão, geralmente não passa de uma negação de um
sentimento subjacente de que "nada é possível", que se alguém tomasse as medidas concretas
necessárias para realizar determinado potencial, esse inevitavelmente daria de
cara com a porta da realidade.
Imaginação ativa é um passo acima do mundo de fantasia
"infra-psíquico" da imaginação passiva. É hierarquizado (como uma
tentação conscientemente resistida) como Afeições / Racionalidade / Vontade;
consequentemente, ela também é um passo parcial em direção a edificação. Ela
assume duas formas. Na imaginação ativa introvertida, nós conscientemente
interagirmos com as imagens simbólicas que a nossa psique nos apresenta, assim
interrogando-as, desafiando-as, para alcançar maior insight psicológico (e por
vezes mesmo espiritual). A substância afetiva da alma recebe a impressão de uma
imagem simbólica interior; a faculdade racional questiona esta imagem e, assim,
transforma sua aura evocativa de significado oculto em conhecimento consciente;
a vontade, em seguida, tem a intenção de realizar existencialmente as
conseqüências psicoespirituais do conhecimento, assim ganhadas. Esta é uma das
principais ferramentas do método psicanalítico de Carl Jung e sua escola. Na
sua forma extrovertida, a imaginação ativa representa o processo de trazer
potenciais para fora do reino imaginário e para a manifestação física concreta
neste mundo. As afeições "atraem" e "entretém" o potencial
em questão, a mente racional transforma esse potencial em um plano eficaz; e a
vontade leva-o para fora.
A imaginação transcendental, assim como a memória
transcendental, baseia-se em realidades que existem além da hierarquia
psíquica. É a imaginação Eterna de William Blake, em linha caracterizava o
Espírito Santo como "uma fonte intelectual". Ibn al-'Arabi fala de
dois níveis discretos do mundo da imaginação, o alam al-mithal. Enquanto o
inferior surge a partir das impressões armazenadas de experiência sensorial; o
mais elevado (al-Malakut) recebe impressões diretas do Plano Inteligível dos
Arquétipos eternos ou das idéias platônicas (al-Jabarut), e os veste de forma
imaginária. A forma inferior da imaginação recorre as impressões de experiência
sensoriais do passado mostra a identidade oculta ou afinidade entre a memória
passiva e a imaginação passiva. A forma mais elevada de imaginação emana
diretamente do Plano inteligível, e, portanto, constitui o mais próximo, a
relação mais plenamente encarnada (no sentido sutil) entre a psique humana e o
mundo dos princípios metafísicos, não mediada pelo discurso racional abstrato,
mas pela reverberação imaginal concreta da intelecção direta, estabelece a
identidade entre o plano elevado imaginário de Ibn al-'Arabi e da Imaginação
Divina de Blake ou a inspiração poética. Estes dois níveis de imaginação, no
entanto, não são completamente independentes, tendo em conta que uma inspiração
que emana a partir do nível mais elevado deve revestir-se com a substância do
inferior; nós não poderíamos imaginar a Sabedoria como uma linda mulher se nós
nunca tivessemos visto mulheres bonitas. É verdade que o arquétipo da beleza
feminina existe em um plano mais elevado do que o material, e que toda a beleza
feminina neste mundo é derivada dela. No entanto, se esse arquétipo tentasse se
manifestar diretamente neste mundo, na ausência de quaisquer memórias da beleza
feminina, ou de presente contemplação desta beleza em forma humana, seria
irreconhecível e, assim, ininteligível. Beatrice de Dante era um raio da beleza
divina, cujo lar adequado era o Paraíso - ainda que ele nunca a vira, mesmo que
brevemente, neste mundo, ele nunca poderia tê-la reconhecido em seu ambiente
celestial. (Aqui, aliás, pode residir uma verdade por trás afirmação
problemática de Tomás de Aquino, que parece negar a realidade da intelecção
direta, que o conhecimento pode alcançar a alma somente através dos sentidos.)
Não obstante, enquanto o ta'wil (exegese no sentido de "retorno à
fonte") da imaginação mais elevada conduz ao plano dos princípios
metafísicos eternos, o ta'wil da parte inferior, a menos se transportar em si
parte do mais elevado, leva apenas a escuridão do mundo material, cortado dos
níveis mais elevados da hierarquia ontológica e, portanto, praticamente
inexistente. (Para a melhor introdução à doutrina da imaginação de Ibn al-'
Arabi, consulte Imaginal Worlds por William Chittick. Devemos também observar
que Ibn al-' Arabi postula um terceiro nível de imaginação, o universal, que é
simplesmente afirmar que o todos os mundos, celestial, psíquico e materiais,
brotam e constituem a Imaginação Universal de Deus.)
Imaginação transcendental é extremamente ativa; no entanto,
não em relação a nossa ação, mas a de Deus, que imprime diretamente sobre a
substância afetiva de nossas almas em seu estado quintessencial as verdades que
Ele nos quer, não apenas para fantasiar sobre ou pensar, mas para realizar.
Quando a camada afetiva da psique está polarizada e diferenciada em várias
emoções específicas, não é possível receber as impressões da imaginação
transcendental. Quando, no entanto, ela retorna ao seu estado indiferenciado
através da virtude da apatia ou da impassibilidade espiritual, que pode ser
representado como a resolução dos quatro elementos ou quatro qualidades
emocionais primitivas [ver Capítulo II] em sua origem comum no Aether, que é
sua Quintessência ("emoções" sendo determinações específicas da
substância afetiva que estão em seu caminho para se tornarem
"impulsos", "motivos" ou "motivações", em sua
interação com a vontade), esta torna-se receptiva às impressões que emanam não
a partir do ambiente circundante psíquico mas diretamente do espiritual ou
Plano inteligível. Imaginação passiva é passiva, não receptiva; não é
propriamente intencional. A imaginação ativa é realmente ativa e intencional,
mas apenas no plano individual, embora os símbolos que ela interaja
individualmente possam ter um aspecto transcendental. Imaginação transcendental
é uma atividade em si, a união de uma determinada verdade eternamente
atualizada na Mente de Deus com a boa vontade ativa para que o sujeito humano
receba e conceba (e não simplesmente permanecer passivos a ela) esta verdade.
Quando a Virgem Maria disse, em Lucas 1:38, "Faça-se em Mim Segundo a
Palavra Tua", ela estava abrindo não apenas sua psique, mas seu próprio
corpo para a imaginação transcendental de Deus.
Como vimos, a imaginação passiva é ontologicamente inferior
memória passiva porque lida com potenciais não realizados. Da mesma forma a
imaginação ativa é ontologicamente inferior memória ativa, mas é
espiritualmente superior, no sentido de que a contemplação da Necessidade
através da memória, embora mais elevada do que o entretenimento da
Possibilidade através da imaginação, nem sempre é fértil para nós em termos
espirituais, pois é um atributo de Deus, e não da psique humana, e,
conseqüentemente, pode, por vezes, ter um efeito paralisante sobre nossa vida
espiritual. A contemplação da Verdade eterna como Ser Necessário apenas,
completo em um Passado eterno governado pelo Ancião dos Dias, irá - a não ser
que nosso próprio futuro torne-se espiritualmente grávido, a menos que
possibilidade seja ativada - tornar o progresso espiritual impossível. Em certo
sentido, Ser Necessário é o próprio Deus, o único que não pode deixar de ser.
Em relação ao ego humano, no entanto, o Ser Necessário é transformado no
desespero da necessidade, os laços de fatalidade e karma. Da mesma forma,
embora o Ser Possível não seja o que deve ser, mas apenas o que pode ser -
meramente contingente, não absoluto - em relação ao ego humano ele pode, se
Deus quiser, ser transformado em virtude de esperança. Podemos certamente
esperar que uma das coisas que podem ser, seja a nossa própria realização de
Deus. Na medida em que estamos imersos na possibilidade do devir, e não na
Necessidade da Verdade Eterna, apenas a manifestação dessa Necessidade como uma
possibilidade concreta em nossas próprias vidas nos pode oferecer alguma
esperança de libertar-nos. Assim, poderíamos dizer, parafraseando os Padres
Orientais, que "O Ser Necessário se torna ser possível para que essa
possibilidade possa se tornar Necessidade". O que só "pode
ser" é perpetuamente incerto e pouco confiável - e ainda outro
significado da palavra "pode" é precisamente poder. O poderoso é
aquele que tem o poder de atualizar possibilidades, de transformar o ser
possível em Ser Necessário; portanto, "Com Deus, todas as coisas são
possíveis."
Memória ativa e a memória transcendental são,
respectivamente, uma abordagem e uma chegada na Eternidade através do passado;
a imaginação ativa e imaginação transcendental são uma abordagem e uma chegada
na Eternidade através do futuro - ou melhor, elas são o futuro no ato de se
aproximar de nós, e se tornando presente para nós como Eternidade, para além do
medo e desejo. Quando a pré-eternidade da memória e a pós-eternidade da
imaginação estão unidos no eterno presente, esta é a Eternidade em si, na qual
a lembrança de Deus como Eterna Realidade e a auto-revelação de Deus como a
Misericórdia de Possibilidade são um e o mesmo.
Quando a memória transcendental e a imaginação
transcendental se unem, o intelecto divino é revelado; quando o intelecto
divino nos é revelado, a alma decaída é edificada, sua hierarquia invertida das
faculdades se configuram corretamente - ou melhor, na posição vertical. As
faculdades estão corretamente hierarquizadas ao longo do axis mundi e,
conseqüentemente, orientada para o que os sufis chamam de Qutb, o Pólo do
intelecto espiritual, tanto cosmológico e pessoal - a realidade que TS Eliot
chamou de "o ponto imóvel do mundo que gira", e que aparece na pessoa
do Mestre espiritual. Tornamo-nos edificados, eretos, seres humanos justos -
Tzaddikim. (A letra hebraica tsade simboliza, entre outras coisas, "o
norte", o quarto do Pólo.) A racionalidade serve a Intelecção diretamente;
a vontade serve a Intelecção indiretamente, obedecendo os ditames da razão; as
afeições capacitam a vontade para servir e assim purificando a mente racional,
bem como abrindo-a mais plenamente para Intelecção; também estará presente o
poder de refletir diretamente a Intelecção espiritual no plano da psique, assim
como um espelho reflete a luz. Esta é a cumprimento dos "mistérios
menores" que, no contexto do caminho espiritual, é o próprio objeto da
Psicologia principial. Além disso, além da psicologia, além da própria psique,
encontram-se os "maiores mistérios" que constituem a união final da
alma com Deus.
Charles Upton - Principal Psychology
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