Temos dito que as relações entre o poder espiritual e temporal devem ser
determinadas por aqueles de seus respectivos domínios. A questão, portanto, nos
traz de volta ao seu princípio, e nos parece muito simples, pois é, no fundo, nada
mais do que a relação entre conhecimento e ação. Pode-se objetar, a partir do
que acabamos de mostrar, que aqueles que possuem o poder temporal deve,
normalmente, possuir um certo conhecimento também; no entanto, deixando de lado por um momento o fato de que eles não possuem conhecimento em si mesmos - uma
vez que eles derivam da autoridade espiritual - este conhecimento está, em todo
caso, relacionado com as aplicações da doutrina e não aos próprios princípios
e, portanto, se trata apenas de um conhecimento por participação. O
conhecimento, por excelência - o único que realmente merece este nome em seu
sentido mais amplo - é o conhecimento dos princípios, independentemente de
todas as aplicações contingentes; e este pertence exclusivamente a aqueles que
possuem autoridade espiritual pois não há nada nele decorrente da ordem
temporal, mesmo levando isso ao seu sentido mais amplo. Aplicações deste
conhecimento, por outro lado, referem-se à ordem temporal, pois este
conhecimento não é mais previsto somente em si e por si, mas na medida em que
dá à ação o seu direito; e é neste ato que se faz necessário aqueles cuja
função é essencialmente adequada ao domínio da ação.
É evidente que em todas as suas diversas formas - militar,
judicial e administrativa - o poder temporal está inteiramente envolvido na
ação; em virtude de dessas mesmas atribuições, ele está confinado, portanto,
dentro dos limites da ação, dentro daquilo que se equivale ao mundo que
se pode ser chamado "humano", incluindo neste termo possibilidades
muito mais extensas do que as normalmente imaginadas. A autoridade espiritual, ao
contrário, se baseia inteiramente no conhecimento, já que, como vimos, a sua
função essencial é a conservação e o ensino da doutrina, e, assim, seu domínio
é tão ilimitado quanto a própria verdade. O que é reservado para esta
autoridade - devido à própria natureza das coisas - não se pode comunicar
com os homens cujas funções são de outra ordem, porque as suas possibilidades
não o incluem - é o conhecimento transcendente e "supremo", o que
está além do domínio "humano" e ainda, de modo mais geral, para além
do mundo manifestado - isto é, o conhecimento que não é mais
"físico", mas "metafísico" no sentido etimológico da palavra.
Deve ficar claro que não há aqui qualquer desejo por parte da casta sacerdotal
em manter o conhecimento de certas verdades para si, mas de uma necessidade que
resulta diretamente das diferenças de natureza existente entre os seres, as
diferenças que, como já dissemos, constituem a razão de ser e o fundamento das
distinções de casta. Aqueles que são feitos para a ação, não são feitos para o
conhecimento puro, e em uma sociedade constituída em bases verdadeiramente
espirituais, cada pessoa deve cumprir a função para a qual ele é realmente 'qualificado';
caso contrário, tudo se mostra confuso e desordenado e nenhuma função é
realizada como deveria ser - que é precisamente o caso de hoje.
Estamos bem cientes que por causa desta confusão, as
considerações estamos fazendo constar aqui, podem aparecer como algo apenas estranho para o Ocidente moderno, onde o que é chamado de
"espiritual" geralmente tem apenas uma conexão remota com o estrito
ponto de vista doutrinal e com conhecimento livre de toda contingência. Aqui
pode-se fazer uma observação bastante curiosa: hoje as pessoas já não se
contentam simplesmente em distinguir entre o espiritual e o temporal, que é
legítimo e até necessário, mas também querem separá-los radicalmente; no
entanto, acontece que as duas ordens nunca estiveram tão misturadas como estão
no presente, e que, acima de tudo, as preocupações temporais nunca estiveram
tão afetadas por aquilo que deveria ser absolutamente independente. Isto é, sem
dúvida, inevitável, em virtude das próprias condições de nossa época, descrito
em outro lugar. De forma a evitar todas as interpretações falsas, devemos,
portanto, afirmar claramente que o que dizemos aqui diz respeito apenas aquilo
que temos chamado de autoridade espiritual em seu estado puro, o qual devemos
ser cautelosos ao procurar por exemplos. Se preferível, pode ser pensada como
um tipo teórico - um "ideal", por assim dizer - embora na verdade
este modo de considerar as coisas não é inteiramente nosso. Nós reconhecemos
que nas aplicações históricas, é sempre necessário ter em conta as contingências,
pelo menos até certo ponto; mas, mesmo ao fazer isso, temos de tomar a
civilização do Ocidente pelo que é: um desvio e uma anomalia que se explica
pelo fato de que ela corresponde à última fase do Kali Yuga.
Mas voltemos ao relacionamento entre o conhecimento e ação.
Já tivemos ocasião de tratar esta questão, até certo ponto, e, consequentemente,
não devemos repetir tudo o que foi dito na época. É indispensável no entanto,
pelo menos, recordar os pontos mais essenciais. Consideramos a antítese do
Oriente e do Ocidente, no presente estado de coisas chegando a isso: o Oriente
mantém a superioridade do conhecimento sobre a ação, enquanto o Ocidente
moderno afirma, pelo contrário, a superioridade da ação sobre o conhecimento
(quando não se chega ao ponto de negar o conhecimento completamente). Estamos
nos referindo apenas para o Ocidente moderno, uma vez que as coisas eram bem
diferente na Antiguidade e na Idade Média. Todas as doutrinas tradicionais,
seja oriental ou ocidental, são unânimes em afirmar a superioridade e até mesmo
a transcendência do conhecimento em relação à ação, em referência ao que de uma
forma desempenha o papel do "motor imóvel" de Aristóteles, o que,
naturalmente, não significa que a ação não tem lugar legítimo e importância dentro
de sua própria ordem. Mas essa ordem é apenas a de contingências humanas.
Mudança seria impossível sem um princípio do qual a procede e que, pelo simples
fato de ser o princípio da mudança, não é possível que esteja sujeito a
alterações, sendo, assim, necessariamente 'imóvel' e no centro da "roda
das coisas".
Da mesma forma, a ação, que pertence ao mundo de mudança,
não pode ter seu princípio em si mesmo, uma vez que deriva sua realidade a
partir de um princípio que está além de seu domínio e que só pode ser
encontrado no conhecimento. De fato, o conhecimento por si só capacita alguém
deixar para trás o mundo da mudança e suas limitações inerentes; e quando ele
atinge o imutável, como é o caso do conhecimento em princípio ou metafísico -
que é o conhecimento por excelência - em si possui imutabilidade, pois todo o
conhecimento verdadeiro é essencialmente a identificação com seu objeto. Pelo
próprio fato da posse desse conhecimento, a autoridade espiritual também possui
a imutabilidade. O poder temporal, ao contrário, está sujeito a todas as
vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que um princípio superior
comunique a ele, em uma medida compatível com a sua natureza e caráter, pois a
estabilidade ele não pode ter por conta própria. Este princípio só pode ser o
representado por autoridade espiritual. A fim de sobreviver, então, o poder
temporal precisa de uma consagração que vem da autoridade espiritual; esta
consagração que lhe confere legitimidade, isto é, a conformidade com a própria
ordem das coisas. Tal era a razão de ser da "iniciação real ", como
explicamos no capítulo anterior; e é nisso que o "direito divino" dos
reis consiste corretamente, é o que a tradição extremo-oriental chama de
"mandato do Céu": o exercício do poder temporal em virtude de uma
delegação da autoridade espiritual, para qual esse poder 'eminentemente'
pertence, como explicamos anteriormente. Toda ação que não procede do
conhecimento carece em princípio e, portanto, nada mais é que uma agitação vão;
da mesma forma, todo o poder temporal que não reconhece sua subordinação
vis-à-vis a autoridade espiritual é vão e ilusório: separado de seu princípio,
pode somente exercer-se de forma desordenada e mover-se inexoravelmente para
sua própria ruína.
Como falamos em "mandato do Céu", não estaremos
fugindo do escopo em relatar aqui como, de acordo com o próprio Confúcio, este
mandato deve ser realizado: "A fim de fazer com que as virtudes naturais
brilhem nos corações de todos os homens, os príncipes antigos, antes de tudo se
dedicavam a governar bem o seu próprio principado. Para governar bem o seu
principado, eles primeiramente restauravam a ordem adequada de suas famílias. A
fim de estabelecer a ordem adequada em suas famílias, eles trabalhavam duro
para aperfeiçoar-se em primeiro lugar. A fim de aperfeiçoar-se, eles regulavam
primeiramente os movimentos de seus corações. Para regular os movimentos de
seus corações, primeiro aperfeiçoaram a sua vontade. Para aperfeiçoar a sua
vontade, eles desenvolveram os seus conhecimentos ao mais alto grau. Se
desenvolve conhecimento examinando a natureza das coisas. Uma vez que a
natureza das coisas é examinada, o conhecimento atinge seu mais alto grau. O
conhecimento tendo chegado ao seu mais alto grau, a vontade torna-se perfeita.
Tendo sido controlado os movimentos do coração, cada um é livre de falhas.
Depois de ter corrigido si mesmo, se estabelece a ordem na família. Com a ordem
reinante na família, o principado é bem governado. Com o principado sendo bem
governado, o império em breve desfrutará de paz.
É preciso admitir que esta é uma concepção do papel do
soberano difere singularmente do que este papel é imaginado no Ocidente
moderno, tornando-o mais difícil de pôr em prática, embora também dando-lhe um
significado completamente diferente; e pode-se notar, em particular, que o
conhecimento é indicado explicitamente como condição primordial para o
estabelecimento da ordem, mesmo no domínio temporal. É fácil agora compreender
que a inversão das relações entre conhecimento e ação em uma civilização é uma
consequência da usurpação da supremacia pelo poder temporal; este poder deve,
de fato, afirmar que não há domínio superior ao seu próprio, que é precisamente
o da ação. Se as coisas parassem aí, no entanto, nós ainda não teríamos
atingido o nosso impasse atual, onde o conhecimento é negado a qualquer valor. Para
que isso ocorra, os xátrias por si mesmos tiveram de ser privados de seu poder
pela castas mais baixas. [1] De fato, como observamos anteriormente, mesmo
quando os xátrias se rebelaram, eles ainda tinham uma tendência a afirmar uma
doutrina truncada, falsificada pela ignorância ou pela negação de tudo o que
vai além da ordem "física", mas dentro da qual ainda há certo
conhecimento real, no entanto inferior. Eles fizeram uma pretensão dessa
doutrina incompleta e irregular como se fosse uma tradição genuína, uma atitude
- condenável, embora possa ser algo, no que diz respeito a verdade - não
totalmente desprovida de uma certa grandeza. [2] Além disso, termos como
"nobreza", "heroísmo" e "honra" não designa, em
sua acepções originais, qualidades que são essencialmente inerentes à natureza
dos xátrias? Por outro lado, quando os elementos que correspondem às funções
sociais de uma ordem inferior passaram a dominar, toda a doutrina tradicional,
ainda que mutilada ou alterada, desaparece totalmente; não subsiste nem mesmo o
menor vestígio de "ciência sagrada", de modo que o reinado do
"conhecimento profano" é introduzido, o reinado, que é, da ignorância
pretendendo ser ciência, tomando prazer em sua nulidade. Tudo pode ser resumido
em poucas palavras: a supremacia dos brâmanes mantêm a ortodoxia doutrinária; a
revolta dos xátrias leva a heterodoxia; mas com a dominação das castas
inferiores vem a noite intelectual, e isso é o que em nossos dias se tornou o
Ocidente, que ameaça alastrar a sua própria escuridão sobre o mundo inteiro.
Alguns, talvez, nos reprovarão por ter falado como se castas
existissem em todos os lugares, e por indevidamente estender a todas as
organizações sociais uma designação que se encaixam corretamente apenas na
Índia; mas como esses últimos apontam essencialmente para funções
necessariamente encontradas em todas as sociedades, não acho essa extensão
indevida. É verdade que a casta não é apenas uma função; é também, e acima de
tudo, aquilo que se encaixa na natureza do indivíduo para exercer esta ou
aquela função em vez de qualquer outra, mas essas diferenças de natureza e
aptidão existem onde quer que haja homens. A diferença entre uma sociedade onde
existem castas no verdadeiro sentido da palavra, e uma sociedade onde não há
nenhuma é que, no primeiro caso, há uma correspondência normal, entre a
natureza dos indivíduos e as funções que desempenham (sujeito apenas a erros de
aplicação que estão em todas os eventos), enquanto que no segundo, essa
correspondência não existe, ou pelo menos só existe acidentalmente; o último
caso mostra o que acontece quando uma organização social carece de uma base
tradicional. [3] Em casos normais, há sempre algo comparável à instituição de
castas, com a modificação adequada deste ou aquele povo; mas a organização que
encontramos na Índia é aquela que representa o tipo mais completo no que diz
respeito à aplicação da doutrina metafísica da ordem humana. Em suma, isso por
si só deveria ser suficiente para justificar os termos que adotamos em
detrimento de outros que poderíamos ter emprestado de instituições que têm, em
sua forma mais especializada, um campo muito mais limitado de aplicação, estes
outros termos seriam incapazes de fornecer as mesmas possibilidades para
expressar certas verdades de ordem mais geral. Além disso, existe outra razão,
apesar de ser mais contingente, de que os termos não são desprezíveis: é muito
notável que a organização social do mundo ocidental na Idade Média era baseada
justamente na divisão de castas, o clero correspondentes aos brâmanes, a
nobreza para os xátrias, o terceiro-estado ao vaixiás, e os servos aos shudras.
Não eram castas no sentido pleno da
palavra, mas esta coincidência, que certamente não é por acaso, permita ainda
realizar uma transposição muito simples de termos na passagem de um caso para o
outro; e esta observação encontrará a sua aplicação nos exemplos históricos que
iremos considerar a seguir.
[1] Em particular, a preponderante importância dada na
consideração de uma ordem econômica, que é uma característica muito marcante de
nossos tempos, pode ser considerada como um sinal de dominação dos vaixás, cujo
equivalente aproximado é representado pela burguesia no mundo ocidental. Na
verdade, é este último que têm dominado desde a Revolução Francesa. E de fato,
são estes últimos que têm dominado desde a Revolução Francesa.
[2] A atitude dos xátrias rebeldes poderia ser muito bem
caracterizado pela denominação “luciferianismo “, que não pode ser confundido
com "satanismo ", embora haja, sem dúvidas, uma certa ligação entre
os dois: “luciferianismo” é a recusa de reconhecer uma autoridade superior
enquanto "satanismo" é uma inversão das relações normais e da ordem
hierárquica, sendo este último muitas vezes uma consequência do primeiro, assim
como depois de sua queda de Lúcifer tornou-se Satanás
[3] É necessário recordar que as "classes"
sociais, como são entendidos hoje no Ocidente, nada têm em comum com as
verdadeiras castas, sendo, no máximo, apenas uma espécie de imitação, sem
validade ou o significado, uma vez que elas não são inteiramente baseadas nas
diferenças de possibilidades implícitas na natureza dos indivíduos.
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