Ferdinand Ossendowski, escreve sobre seu encontro com
Ungern-Sternberg no seu livro "Bestas, Homens e Deuses (1922)"
Filhos de Cruzados e de Corsários
— Fale-me de você e de sua viagem — pediu. Contei-lhe tudo
que me pareceu poder interessa-lo. Ele ouvia-me com muita atenção.
— Agora quero falar-lhe
a meu respeito,
assim você saberá quem
eu sou. O meu nome é circundado de
tanto ódio e
terror que ninguém consegue mais isolar a verdade da
mentira, e a história da lenda. Quem sabe, qualquer dia você vai querer escrever
um livro; então
você recordará sua passagem
pela Mongólia e sua
estada na "yurta" do "general sanguinário". Fechou os
olhos, e sem
deixar de fumar, começou a
falar nervosamente, sem
completar as frases, como se o tempo fosse escasso.
— A família Ungern
von Sternberg é antiga; há, nas suas
origens, uma mistura
de alemães e húngaros,
de hunos no
tempo de Átila.
Meus antepassados eram guerreiros e participaram de todas as guerras
européias. Foram cruzados: um Ungern morreu perto das muralhas de Jerusalém,
combatendo com a tropa de Ricardo Coração de Leão. Durante
a trágica cruzada
das crianças morreu outro,
Raoul Ungern, que
tinha apenas onze anos.
Quando os mais valentes guerreiros do
país foram enviados
para as fronteiras orientais do império germânico
para lutar contra os eslavos, no
século XII, meu
antepassado Arthur achava-se entre
eles; ele era
o Barão Halsa Ungern
Sternberg. Os cavaleiros dessas
comarcas fronteiriças formaram
a ordem teutônica dos monges
cavaleiros, e converteram ao
cristianismo, pelo ferro
e pelo fogo,
as populações pagãs de
lituanos, estonianos, livônios e
eslavos. Sempre houve um membro da minha família na
ordem dos Cavaleiros teutônicos, desde sua fundação.
Quando a ordem foi desmantelada no
Gruenewald, derrotada pelas tropas
polonesas e lituanas,
dois barões Ungern von
Sternberg morreram no
campo de batalha. Nossa família
sempre teve espírito bélico, com
tendência aos ascetismo e ao
misticismo.
Entre os séculos XVI e XVII vários barões Ungern von Sternberg
moravam em seus
castelos na Livônia
e na Estônia. Suas aventuras inspiraram muitos contos
e muitas lendas.
Heinrich von Sternberg, cuja
apelido era "o Machado", era um cavaleiro errante.
Seu nome e sua
lança eram conhecidos em
todos os torneios
da França, da Inglaterra, da Itália e da Espanha, e ele
inspirava terror a todos
os seus adversários.
Morreu em Cadiz quando a espada
de um cavaleiro abriu-lhe o crânio. O Barão Raoul Ungern era um bandido
cavaleiro que agia na região entre Riga e Reval. O castelo
do Barão Pierre
Ungern localizava-se na ilha
de Dago, no
mar Báltico, e
daí ele saía, para
as suas investidas
de corsário, contra
os navios mercantes. No
começo do século
XVIII o Barão
Wilhelm Ungern ficou conhecido
pelo pseudônimo de "irmão de Satã" pelas suas
práticas de alquimia. Meu avô era corsário no Oceano Índico, e exigia um tributo
dos navios mercantes
ingleses. Durante muito tempo conseguiu fugir dos navios de guerra
britânicos, mas foi
finalmente capturado e entregue
ao cônsul russo,
que o mandou para
a Rússia. Foi
condenado ao desterro na
Transbaikalia. Eu também sou oficial da
Marinha, mas durante a guerra nipo-russa tive que abandonar
minha profissão e
agregar-me aos Cossacos do Zabaikal. Consagrei minha vida toda à guerra
e ao estudo do budismo. Meu avô levara a doutrina budista da Índia: meu pai e
eu aderimos a ela. Tentei fundar uma ordem militar budista na Transbaikalia
para organizar uma luta implacável contra a depravação revolucionária.
Calou-se por um
momento, enquanto bebia várias xícaras de chá, forte e preto ao
ponto de parecer café.
— Ah, a depravação
revolucionária! Quem se preocupa
com ela, fora
Bergson, o filósofo francês, e o sábio Tachi Lama no
Tibete?
O neto do
corsário, que citava
teorias e obras científicas, nomes
de sábios e
de escritores, a Bíblia e os livros budistas, continuou,
misturando o idioma francês ao alemão, ao russo e ao inglês: — Nos livros
budistas e nos antigos escritos cristãos
encontram-se profecias importantes
a respeito da época
na qual deverá
começar a guerra entre
os espíritos maus e
os espíritos bons. Então
chegará a praga
desconhecida que dominará o
mundo, varrendo toda
a civilização, calcando a
moral e destruindo
os povos. Sua arma
é a revolução.
Durante toda revolução,
a inteligência criadora, auxiliada
pela experiência do passado, será
substituída pela força jovem e brutal do destruidor. Por isso as paixões vis e
os baixos instintos dominarão. O homem se afastará do divino e do espiritual.
Durante a guerra ficou provado que a Humanidade deve procurar ideais sempre mais
elevados: mas foi
justamente naquela época que
surgiu a praga
vaticinada pelo Cristo, pelo
apóstolo São João,
por Buda, pelos primeiros
mártires cristãos, Dante, Leonardo da
Vinci, Goethe e
Dostoievsky. Essa maldição que
apareceu estancou o
progresso, barrando nosso caminho em direção ao divino. A revolução é uma doença
contagiosa e a
Europa prejudicou-se a si
própria negociando com Moscou,
como já tinha
prejudicado as outras regiões do mundo. O Grande Espírito
colocou em nossas vidas o
Karma, que não
conhece nem a cólera,
nem o perdão.
Ele regula nossa contabilidade, e o resultado será a
fome, a destruição, a morte
da civilização, da
glória e da honra, o fim das nações, o fim dos povos.
Posso até vislumbrar esse
horror, essa tétrica
e louca destruição da humanidade.
[...]
— Você tem certeza
que não vai
se entediar? Muito bem,
vou continuar minha
história, não tenho muito a
acrescentar, porém vai ser a parte mais interessante.
— Já disse a você que era minha intenção fundar uma milícia budista na Rússia. Por quê? Para proteger a evolução da humanidade e lutar contra a revolução: estou convencido de que a evolução leva à divindade, enquanto a revolução só pode levar à bestialidade. Quanto trabalhei na Rússia! Na Rússia os camponeses são gente grosseira, iletrados, continuamente levados por acessos de cólera, odiando tudo e a todos sem nem saber porque. São desconfiados e materialistas; não possuem qualquer ideal. E os intelectuais vivem num idealismo imaginário que carece totalmente de realidade. Eles tendem a criticar tudo mas não possuem energia criadora. Eles não têm força de vontade; só sabem falar, falar, falar! Como os camponeses, também os intelectuais não gostam de nada e de ninguém. Seus sentimentos são completamente imaginários, seus pensamentos passam sem deixar vestígio, palavras vazias. Meus companheiros evidentemente começaram logo a transgredir o regulamento da ordem. Então ordenei que o celibato fosse obrigatório, assim como a abstenção total de contato com mulheres, dos confortos da vida e de tudo que é supérfluo, segundo os ditames da religião amarela, Para ajudar os russos a dominar seus instintos, mandei que eles consumissem álcool, haxixe e ópio em quantidades ilimitadas. Hoje eu mando enforcar os soldados que ingerem álcool; naquela época, porém, nós bebíamos quantidades incríveis, até contrairmos a "febre branca", até o "delirium tremens". Não consegui manter a ordem, mas agrupei à minha volta trezentos homens nos quais eu tinha instilado uma audácia extraordinária e uma ferocidade sem limites. Durante a guerra contra a Alemanha eles portaram-se como heróis, e tiveram a mesma atuação contra os bolcheviques. Restou apenas um pequeno grupo.
[...]
— Durante a guerra vimos como o exército russo estava sendo
aos poucos corrompido;
previmos que a Rússia
trairia seus aliados
e compreendemos os perigos
que adviriam da revolução.
Então para reagir
contra tudo isso, planejamos reunir
os povos mongóis
que não olvidaram sua
antiga fé, nem
esqueceram seus antigos costumes, para formar
um único Estado asiático,
composto de tribos
autônomas, sob a soberania
moral e jurídica
da China, pátria
da mais antiga e
da mais evoluída
civilização. O Estado compreenderia os chineses,, os
mongóis, os tibetanos, os
buriats, os kirguizes
e os calmucos. O
Estado devia ser
material e moralmente poderoso a
fim de poder agir como uma barreira contra
a revolução e
poder preservar cuidadosamente a filosofia e a política do respeito
à pessoa, sendo
esta uma célula daquele. Se a humanidade louca e
corrupta continua afrontando o
espírito divino que
está no coração dos
homens, a derramar
o sangue e a
impedir a evolução
moral, então esse
Estado asiático tem por
obrigação sustar com
qualquer meio a marcha para a destruição e restabelecer a ordem,
e uma paz que seja
estável e duradoura. Durante
a guerra essas
idéias se propagaram até
entre os turcomanos,
os kirguizes os buriats e os mongóis.
[...]
O carro corria
novamente pela planície,
descrevendo uma grande
curva e o
barão estava tecendo
considerações sobre a vida asiática, com aquela sua voz rude e nervosa.
— A Rússia traiu a França, a Inglaterra e a América quando
assinou o tratado de Brest-Litovsk, e com
isso trouxe o
caos. Naquela ocasião decidimos mobilizar
a Ásia contra
a Alemanha. Nossos enviados penetraram
na Mongólia, no Tibete,
no Turquestão e
na China. Foi
nessa mesma época que
os bolcheviques iniciaram
a matança dos oficiais
russos; por esse
motivo tivemos que abandonar
nosso projeto pan-asiático,
concentrando todo nosso
esforço na guerra civil.
Esperamos que mais
tarde tivéssemos a possibilidade de acordar a Ásia inteira, e
devolver, com a
sua ajuda, o reino
de Deus e a
paz ao mundo todo.
Estou muito satisfeito de ter contribuído
para essa obra, libertando a Mongólia.
Ficou algum tempo calado, refletindo.
— Alguns dos meus
associados nessa obra
não gostam de mim, pelo meu rigor e por aquilo que eles denominam
de minhas atrocidades
— acrescentou tristemente. — Eles parecem não ter ainda compreendido
que não estamos
apenas lutando contra um
partido político, mas
contra uma horda de assassinos, contra os destruidores da civilização
contemporânea. Por que os
italianos executam os
anarquistas que jogam bombas?
Por que então
não me reconhecem
o direito de livrar
o mundo da
corja que quer destruir
a calma do
povo? Eu, descendente
de cavaleiros teutônicos, de cruzados e de corsários, só reconheço
a morte como
castigo adequado para os
assassinos!...
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