quinta-feira, 16 de abril de 2015

Filomania (Por Giovanni Papini)

Hoje á noite, na Coupole, me fizeram conhecer um tal Rabah Tehom, que veio a Paris para iniciar, ao que diz, a revolução anti-filosófica Na nossa "roda", onde estavam reunidos dois romenos, um senegalês, um peruano o um sueco, o pequeno Rabah Tehom, gnomo do Oriente vestido de cor de laranja, arrotava as suas palavras em péssimo francês.

A cor do seu rosto, sob a luz deslumbrante, lutava entre o violeta extinto e o verde pisado. Falta-lhe um braço: diz que o perdeu em uma batalha, mas não se sabe em que guerra. Em torno dos cabelos gordurosos carregava uma corôa de louros de papel dourado. Nenhum licor o atemorizava.

— Que é que tem ganho os senhores — grasnava Rabah Tehom, levantando o único braço para os alampadários — seguindo a razão e adotando a inteligencia? "Não se alcançou a verdade, o homem é cada vez mais infeliz, e a filosofia, que deveria ser, segundo os antigos farsantes gregos, a coroa da sabedoria, se retorce entre as contradições ou confessa a sua impotência. Os dois malfeitores foram castigados desde o princípio - Sócrates com o veneno, Platão com a escravidão - mas não foi suficiente. Eles envenenaram e aprisionaram oitenta gerações com os seus ensinamentos pestilenciais. O monstruoso Sócrates se vingou da cicuta ateniense intoxicando os passivos europeus durante vinte e quatro séculos, com a sua dialética. Os resultados são visíveis. O exercício teimoso e estéril da razão levou ao ceticismo, ao niilismo, ao tédio, ao desespero. As poucas verdades entrevistas com aquele método conduziram ao terror. Na idade moderna, os filósofos se refugiaram finalmente na loucura: Rousseau, Comte e Nietzsche morreram loucos. E só graças a essa fortuna puderam renovar o pensamento ocidental com ideias mais fecundas e temerárias.

"Aqui está o segredo da redenção . Se a inteligencia leva a dúvida ou a falsidade, é de presumir que a insensatez, por idêntica lei, conduza a certeza e a luz. Se o excesso de raciocínio leva, não a conquista da verdade, mas a loucura, é claro que é preciso partir da loucura para chegar a uma racionalidade superior que resolverá os enigmas do mundo.

"A filosofia - amor à sabedoria - precisa ser substituída pela Filomania, o amor à loucura. Mas, a loucura não se ensina como se pode ensinar a lógica e a ciência do método. É necessário desabituar os cérebros humanos das práticas nefastas do velho racionalismo. Não basta abolir o culto desastroso da inteligência; é preciso extirpar das nossas mentes os tumores do intelectualismo, digamos antes, se o querem, a claridade, o bom sentido, a mania indutiva e dedutiva, o intelecto. Quem quiser ascender ao céu superior da revelação interna e universal, deve, antes de mais nada, enlouquecer. O sábio nunca poderá entrar no paraíso da verdade; vinte e cinco séculos de experiência contra a natureza, demonstram-no de modo irrefutável.

"Tomando o caminho contrário, adotando, andazamente, o delírio como ponto de partida, poderemos, talvez, aferrar o que não ponde ser aferrado por nenhuma especie de raciocínios. Contudo, a Filomania não pode ser difundida por meio de livros corno a fracassada Filosofia. É preciso extrair a inteligencia aos mais aptos; educar fora dos sistemas normais, os futuros criadores da Filomania. Não nos podemos servir dos loucos no estado natural, no qual lhes restam muitos rastros do ensino racionalista e do antigo pensamento. Estou percorrendo a Europa para recolher dinheiro que me permita fundar o primeiro "Instituto de Demência Voluntaria", do qual deverão sair os pionniers da Filomania. Os programas estão dispostos e eu me comprometo a transformar, em três anos, o animai mais racional, empestado de lógica, em um louco milagroso, profético e demiúrgico. Em três gerações, a Filomania florescerá sobre a terra, iniciando uma civilização nova,  que corresponderá ás exigências milenares do espirito humano e dará a paz a todos na suprema certeza."

Rabah Tehom reajustou a coroa de louros que lhe havia caído quase sobre os olhos, enxugou a fronte, bebeu whisky que um dos romenos lhe fizera trazer e interrogou com o olhar os ouvintes silenciosos. Apiedando-me de sua melancólica maluquice, tirei do bolso uma nota de cem francos e entreguei-a ao apóstolo da Filomania.

- Aqui está - disse-lhe - o meu donativo para a Escola da Demência Voluntária. É pouco, mas creio que uma escola tal deve ser muito menos necessária do que se lhe afigura.
Rabah Tehom moveu a cabeça com ar de comiseração.

- Todos podres pela inteligencia! - murmurou. - Vem o médico e lhe respondem com uma esmola.
Mas, apesar dos eu mau humor, meteu com cuidado os cem francos na carteira, sem me agradecer, e pôs-se de pé. Tirou a coroa dourada da cabeça, enfiou-a no bolso, e, depois de haver feito uma inclinação muito mesureira, saiu da Coupole, orgulhoso e solene como um profeta enviado ao desterro.


Conto do livro Gog de Giovanni Papini 

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