Se as observações deste capítulo são endereçadas ao leitor
em pessoa é porque a questão tratada diz respeito apenas ao indivíduo como tal,
como uma relação consigo mesmo. Não é abstrato, teórico e remoto, mas imediato
e pessoal. Surge de um conselho, concedido generosamente para nós nesses dias: é
necessário acima de tudo “ser você mesmo”. Esse conselho parece simples o
bastante até que se comece a perguntar como exatamente aplicar isso em seu
próprio caso. Para você, o leitor, “seu próprio caso” é o seu caso e de ninguém
mais.
O que exatamente é você, essencialmente e não
acidentalmente? O que é você “em você mesmo” e não como um açougueiro, padeiro
ou vendedor? Você não pode tirar proveito em ser você mesmo até que você tenha
certeza que sabe responder essa questão.
É você um ser criado por Deus a Sua própria imagem, nomeado
por ele como seu representante na terra e, portanto, dado o domínio sobre ela, equipado
para o cumprimento dessa função com uma relativa liberdade de escolha tanto em
pensamento e ação? Você possui liberdade, que reflete a ausência total de
restrição atribuível somente a Deus, mas ao que ao mesmo tempo te faz
susceptível ao erro? Você é essencialmente isso e somente acidentalmente algo
diferente?
Ou, alternativamente, você é essencialmente uma espécie do
produto mais avançado até então conhecido de uma evolução contínua e
progressiva, começando desde o ajuntamento fortuito de uma molécula proteica em
alguma lama primitiva, sendo a própria lama um raro e mais ou menos produto da
evolução das galáxias desde um ponto inicial que os físicos ainda não chegaram
em consentimento?
Se você escolhe a primeira, a alternativa mística ou
religiosa, você não necessariamente exclui a priori qualquer descrição
plausível de sua situação física no Universo. Você, entretanto, exclui
absolutamente tanto a primazia e a finalidade de tal descrição. Ela nunca pode
ser mais que uma descrição, e como tal, não é uma explicação, mesmo se ela for
a mais correta e completa que o homem possa fazer. Então, se você aceita a
alternativa mística, você deve recusar aceitar qualquer descrição como uma
explicação adequada do que você é.
Se você escolhe a segunda, a alternativa física (a palavra
‘física’ aqui está sendo usada no sentido mais ou menos da palavra ‘natural’,
então isso inclui tanto a mente como o corpo) você desse modo exclui a
primeira. Assim você considera seu corpo, seus pensamentos e seus sentimentos
comprometendo tudo que você é, de tal forma que qualquer coisa chamada de
‘mística’ ou ‘religiosa’ só pode ser explicada como um produto desses três. Se
você escolhe a alternativa física, “ser você mesmo” significa simplesmente
soltar as rédeas de seus desejos corporais, seus pensamentos e seus
sentimentos. Isso, de fato, parece o que você e eu, e especialmente nossas
crianças, somos aconselhados a fazer. A desordem que daí surge frequentemente
provoca nossa surpresa e reprovação. Incidentalmente,
se você solta as rédeas a essas três coisas, você está se jogando diretamente
nas mãos de quem sabe como manipula-los para seus próprios fins. Com a ajuda da
psicologia moderna, essa manipulação tornou-se uma ciência.
E mesmo assim, quão correto foi o conselho nos deram! Se nós
somos ‘feitos à imagem de Deus’, tudo que precisamos fazer é ‘ser nós mesmos’.
Se, com esse fim, você tentar encontrar o que você é através
de uma observação de você mesmo, o que você parece ser para você mesmo será o
que você quer ser acidentalmente e não o que você é essencialmente. Quando você
olha pra si mesmo, ou pensa que você está fazendo algo, há um que olha e há
algo que ele vê. Eles não podem ser o mesmo. Se eles fossem o mesmo, eles
seriam um só e não dois, portanto nenhuma relação de “olhando para” ou outra de
qualquer tipo poderia surgir. Por isso, quando você olha pra si mesmo, o seu
“eu” essencial está realmente olhando para o seu “eu” acidental. Em outras
palavras, você está olhando para aquilo que nos dias de hoje é chamado de sua
“personalidade”.
Ainda assim você é uma pessoa e não duas. Não importa o que
aconteça, você é sempre a mesma pessoa; você continua você mesmo sob todas as
vicissitudes que possam afetar seu corpo ou sua mente, pelo menos enquanto você
é são. Seu corpo e sua mente juntos constitui o que as vezes é chamado de
‘complexo psicofísico’. Esse complexo nunca é o mesmo, nem por dois minutos,
seja materialmente ou fisicamente; mas sua identidade se mantem constante seja
você jovem ou velho, gordo ou magro, feliz ou triste, estando acordado ou
dormindo. Se não fosse assim, não haveria continuidade em sua existência,
nenhuma individualidade e nenhuma percepção de mudança. Existe um “você” que é
o ponto de referência invariável, ou centro, e existe coisas mutáveis que você
é consciente. O primeiro não é identificado com o último. Essas coisas mutáveis
incluem tudo que você pode perceber e conhece distintivamente, e elas são do
ambiente, periféricas e externas em relação ao centro consciente que é seu
verdadeiro “eu”. Seu complexo psicofísico por inteiro, na medida que você pode
perceber e conhecê-lo distintamente, evidentemente está entre essas coisas
externas e mutáveis. Ele pertence a você, mas não é ao “você” que ele pertence.
É a “personalidade” que você pode procurar desenvolver, mas não é o “você” que
busca por desenvolvimento.
Assim, se você quer saber quem você realmente é, para que
você saiba o que significa “ser você mesmo”, você deve dirigir sua atenção para
o interior e não para o exterior; isso é, para longe de todos os objetos dos sentidos,
incluindo seu próprio corpo, mente e sentimentos, em direção ao ponto central
indistinguível do seu ser. Essa atenção para o interior deve, evidentemente, se
voltar para o oposto daquela atenção exterior. Hoje em dia nós somos ensinados
que o único caminho para chegar a verdade é pela intensificação e refinamento
da observação. Dessa forma, para a maioria de nós, a atenção interior envolve
algo que nunca tentamos conscientemente, ou mesmo nem sequer consideramos.
É verdade que não podemos viver sem observação, nossos
sentidos não possuem outra função. Entretanto, se aquilo que foi dito é
verdade, qualquer aproximação da verdade que se dá pela observação e nada mais,
exclui a mais importante de todas as verdades, a verdade onde todas as outras
verdades se fixam, isto é, a verdade sobre o que nós verdadeiramente somos. Se
nós estamos enganamos sobre o que somos, e por tanto em relação com tudo mais, e
sobre o propósito da nossa vida, e sobre qual é nosso destino, não é de muita
utilidade saber qualquer coisa a mais, por que as chances são que usemos nosso
conhecimento de forma errada, provavelmente para nosso próprio mal. Isso não é
óbvio? E isso não sugere, de forma bastante alarmante, exatamente o que parece
estar acontecendo?
Sem dúvidas você já deve ter percebido que essa outra
aproximação à verdade, essa atenção interior ou ‘concentração’ como se fosse
contrária ou complementar a aproximação via observação, não pode ser nada mais
que o caminho contemplativo, o caminho seguido pelos homens sábios e santos de
todas as épocas e povos. Uma vez que o objetivo não pode ser percebido
distintivamente, esse caminho não pode ser mapeado. Apenas aqueles que seguiram
esse caminho, e somente eles, podem ensinar.
Se você é um daqueles que somente aceita a validade da
aproximação científica, tudo isso parecerá para você como um mero sofismo
vazio. Por isso pode valer a pena levar a questão um pouco mais longe.
Você deve ter notado que dizer ‘meu’ ser essencial pode
sugerir que ele pertence a você; e que está, até certa medida, ao seu dispor ou
sujeito a sua influência, como se fosse sua propriedade. Mas claro que não é assim. Nada que você pode
fazer afeta de alguma maneira o fato de que você é o que você é. Como vimos,
seu ser essencial continua o que é enquanto a correnteza de formas mutáveis e
perecíveis passam. Mas seu ser essencial não deve ser confundido com os
acréscimos que estão tão fortemente associados nele durante sua estadia
temporária na terra, incluindo, claro, suas observações do próprio complexo psicofísico.
Aqui é onde muito dos religiosos se atrapalham quando estão considerando os
estados pós-morte do ser essencial, que são as vezes chamados de ‘paraíso’,
‘purgatório’ e ‘inferno’.
Só mais uma observação. Se somente sua ‘acidentalidade’ é
distinguível, enquanto que sua essencialidade não, o mesmo se aplica ao seu
vizinho. Isso sugere que você e ele são essencialmente um e apenas
acidentalmente dois. Se você ver a situação dessa forma, você naturalmente
amá-lo-ia ‘como se fosse você mesmo’; mas você só pode ver a situação dessa
forma na medida em que você tiver realizado quem você é. Essa realização
envolve o a travessia da multiplicidade em constante mudança da sua
acidentalidade terrestre e a busca com todo seu coração, mente e força a
Unidade imutável que é a realidade central e essencial de si mesmo, de seu
vizinho e de todos os seres. E você só pode esperar encontra-la onde pode ser
encontrada, e que é "dentro de si".
Agora você entende
que a frase 'ser você mesmo' pode ser interpretada em duas maneiras
criticamente diferentes, não é mesmo?
Lord Northbourne em Looking Back on Progress
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