sexta-feira, 10 de abril de 2015

A Doutrina Svadharma e o Existencialismo (por Julius Evola)

Em um ensaio anterior, destaquei a importância de esclarecer alguns pontos em relação as doutrinas tradicionais do leste e certas tendências intelectuais bastante avançadas que emergem no Ocidente. Então disse que, em muitos casos, um conhecimento sério - e não um conhecimento amador das doutrinas - pode muito bem servir para complementar as tendências, libertando-as de seu aspecto de opiniões de natureza puramente individual e especulativa, e também de tudo que está afetado por uma atmosfera de crise, tal como se encontra, de fato, a nossa civilização ocidental moderna. Dessa forma, seria possível elevar a partir dessas intuições ocasionais, atingidas pelos europeus que estão lutando em um estado de profundo trabalho crítico, em um plano de um conhecimento objetivo e supra-pessoal, que deveria ser definido como "sabedoria", em vez de "filosofia".


Eu desejo tratar aqui, neste sentido, com certos aspectos de uma tendência de pensamento, muito na moda hoje em dia, conhecido como "existencialismo", selecionando como contrapartida a ele a doutrina hindu de "svadharma". [seu próprio dharma ou dever em relação a uma maior ordem cósmica]

Em relação ao existencialismo, naturalmente, não considerarei sua forma excêntrica e boêmia, de caráter predominantemente literário, que infelizmente, são os responsáveis pela nova popularização desta tendência. Ao contrário, farei referência ao existencialismo sério, filosófico, que tomou forma mesmo antes da Segunda Guerra Mundial e que, depois de Søren Kierkegaard (e em certos aspectos Nietzsche), teve como seus principais intérpretes Jaspers, Heidegger e Barth. Tentarei, primeiramente, expor algumas ideias básicas do existencialismo de maneira mais acessível. Esta não é uma tarefa fácil em um ensaio curto, tendo em conta a natureza peculiar e sua terminologia quase esotérica dos existencialistas, em quem muitas palavras frequentemente são usadas com significados totalmente diferentes de sua forma usual.

A base do existencialismo reside na concepção de "existência". Essa expressão não deve ser tomada no sentido mais comum e simples. Existência, de acordo com Kierkegaard, significa o ponto paradoxal e contraditório, em que o finito e o infinito, o temporal e o eterno estão implícitos e se encontram. A existência aqui, naturalmente é aquela do Ego, do ser individual, que é, portanto, considerada uma síntese de elementos contraditórios. Sua situação espiritual é tal que ele não pode se afirmar (o ser finito que existe no tempo), sem também afirmar o "outro" além dele próprio (o incondicionado, o temporário e o ser absoluto); mas, por outro lado, ele não pode afirmar o transcendente sem também afirmar ele mesmo, o ser existente no tempo. Duvidar de um desses lados significa também duvidar do outro. Essa é a premissa geral do existencialismo, assim afirmado pelos seus principais intérpretes, de Kierkegaard até Lavelle, de Barth até Jaspers. Aqui é adequado apontar a harmonia dessa linha de pensamento com os pontos de vista do hinduísmo tradicional. Em primeiro lugar, existe uma questão de método: o existencialismo procura alcançar uma intimidade no centro do indivíduo, que deve ao mesmo tempo ter um valor de uma experiência metafísica. Tal método pode ser considerado aquele do conjunto do ioga upanixádico e também da filosofia budista, a qual podemos aplicar a formula de um "experimentalismo transcendental". Em segundo lugar, é óbvio que que este ponto de encontro ambíguo entre o centro do ser finito e o incondicionado de certa forma nos lembra de atma, que apresenta características reais, por assim dizer, de uma "transcendência imanente", de algo que é o Ego, e ao mesmo tempo o Super-Ego, o Brahman eterno.

No entanto, o paradoxo da "existência", entendido no sentido mencionado acima, toma forma de um problema. Encontramo-nos, por assim dizer, diante de uma posição insustentável de equilíbrio instável, que deve ser resolvido em função de um ou de outro dos termos, que se encontram no indivíduo, mas que parecem excluir, bem como a contradizerem entre si: o condicionado e o incondicionado, o temporal e o não-temporal.

As duas soluções possíveis correspondem as duas direções seguidas pelo existencialismo, em relação das quais posso mencionar os nomes de Heidegger e Sartre por um lado, e Jaspers e acima de tudo Barth, de outro.

A solução adequada à filosofia de Heidegger é aquela do homem que tenta encontrar o incondicionado no transitório. O ponto, de acordo com esse pensador, apresenta-se da seguinte forma: a existência no tempo significa existir como um indivíduo e como um ser individualizado. Mas, a individualidade significa particularidade, significa a afirmação e a assunção de um determinado grupo de possibilidades, com a exclusão de outras, e o conjunto de todas outras; mas essas subsistem, elas vivem dentro do indivíduo, elas constituem o senso do infinito dentro dele, e tendem a encontrar expressão, para que se realizem. Isso determina o movimento do Ego no tempo, um movimento concebido no sentido de sair de nós mesmos (de nossa própria particularidade definida), como uma tendência para realizar tudo aquilo que nós excluímos de nós mesmos, para viver com elas como uma sucessão de experiências: uma sucessão que se desenvolve no tempo, e que deve representar o substituto para a totalidade, para tudo aquilo que o indivíduo, enquanto tal, não pode ser simultaneamente. Naturalmente, a infinitude de possibilidades corresponde necessariamente com a infinitude do tempo, e tudo isso nos dá, em certa medida, um sentimento que estamos perseguimos a nossa própria sombra: uma busca que nunca alcançamos, sem nunca termos inteiramente a posse de si mesmo, a fim de acalmar e resolver a antítese e a "angústia" própria da existência.

Esta solução de Heidegger termina, assim, em uma espécie de justificação metafísica da santificação daquilo que, em termos hindus, pode ser chamado de samsara, a consciência samsarica. Isto parece-nos uma posição perigosa, na medida em que tende para as diversas filosofias ocidentais modernas de imanência, de "Vida", de tornar-se, uma posição que, em nossa opinião, dificilmente pode ser vinculada a uma concepção tradicional do mundo. Na verdade, um pessimismo dissimulado e sombrio paira sobre toda a filosofia de Heidegger.

A segunda tendência existencialista, aquela de Jaspers e Barth, se encontra em uma situação diferente. Partindo de premissas mais ou menos semelhantes, a importância é dada ao conceito que, se o indivíduo representa uma possibilidade particular em meio de uma infinidade de outras, que estão fora dele, essa possibilidade definitiva emana de uma escolha. Esta escolha, naturalmente, nos leva a algo anterior ao tempo e anterior a existência dentro do tempo. A solução da antítese é dada pela "ética da fidelidade": que, estando nós no tempo, devemos assumir, devemos considerar "a nossa essência como idêntica a nossa própria existência", devemos permanecer fiéis ao que somos, tendo o pressentimento de que algo é eterno, que, através de nós mesmos, torna-se "temporalizado" em si mesmo, que tudo que aparece como uma necessidade, como um destino, como dificuldade, nos remete a algo desejado, a algo que só é assim por que ele escolheu que fosse assim, assumindo essa natureza particular, excluindo qualquer outra natureza possível.

Assim, juntamente com o preceito de fidelidade a nós mesmos, existe, no existencialismo, também um preceito de esclarecimento (Erhellung). A regra de vida desse existencialismo não é a busca por algo mais, a dispersão de nós mesmos no infinito, na problemática das perspectivas que se apresentam no mundo exterior, e menos ainda significa uma busca no tempo - como Heidegger clama - da miragem do incondicionado que sempre escapa; devemos então assumir nossa própria perspectiva ou visão de mundo, aprender e compreender o seu significado, que é equivalente a sua raiz transcendental, aquela vontade pela qual eu sou o que sou, e que, na existência nós possamos perceber apenas com base em seus traços e seus efeitos. Assim, então, a existência aparecerá apenas como julgamento no tempo de algo que existe antes do tempo, e cada necessidade ou finitude revelar-se-á como a consequência de um ato primordial de poder livre.

Aqueles que conhecem a doutrina do dharma e do svadharma não pode deixar de notar as analogias com essas visões existencialistas. De acordo com a concepção hindu, cada ser tem sua própria natureza. Não é por acaso que somos o que somos e não outra coisa. Para essa natureza - a menos que sentimos uma vocação para uma subida superior - devemos permanecer fiéis; fidelidade a nossa própria natureza, qualquer que seja, é o mais elevado culto que podemos render ao Espírito Supremo.
Assim, para ser nós mesmos devemos assumir nossa própria posição e tender a nossa própria perfeição individual, sem que os interesses exteriores nos distraiam ou seduzam. Não há natureza própria, dharma, superior ou inferior a outra, se tomamos - como devemos tomar - o infinito, aquilo que está além do tempo, como medida. Dessa forma, trair seu próprio dharma - a lei da natureza de si mesmo - assumir o dharma - o jeito de ser, a lei, o caminho - de outro é um erro e culpa: culpa, não no sentido moral, mas no sentido ontológico. É um ferimento contra a própria ordem cósmica - rta - equivalente a uma violência contra nós mesmos; porque, assim, entramos em contradição com nós mesmos, desejamos ser aqui, no tempo, algo diferente daquilo que nós desejamos ser além de todos os tempos. O efeito disso é a desintegração, e, por conseguinte, uma descida na hierarquia dos seres (simbolicamente, o inferno). Estes são conceitos tradicionais hindus que encontramos expressos nas Leis de Manu e, de uma forma ainda mais definida, no Bhagavad Gita. Sabemos que na Índia elas não permaneceram na mera teoria e filosofia, mas exerceram uma forte influência na vida individual e coletiva, constituindo, entre outras coisas, a base ética e metafisica do sistema de castas, aquele sistema que é tão pouco compreendido por ocidentais (embora na Idade Média houve algo do mesmo tipo), enquanto que está prestes a ser posta de lado, pelos orientais modernizados.

Mas, na visão geral do homem e do mundo, em que a doutrina svadharma está enquadrada, existem dimensões que não faltam no existencialismo; é mais integral que esse ponto duvidoso da filosofia ocidental.

Neste contexto Barth deve ser esquecido. Ele termina em um teocentrismo que lhe permite conectar o existencialismo com a teologia cristã. Esta teologia, como sabemos, com o tomismo defendeu a teoria da "nossa própria natureza" - natura própria - e a ética de fidelidade à essa natureza, a qual é diferente em cada homem e é desejada por Deus. Mas aqui, em nossa opinião, nós estamos nos elevando demais, e a referência à divindade teísta, cuja vontade deve ser responsável por estarmos nesse modo particular, é resumir demais a explicação. O problema existencialista só é resolvido pela fé, pela confiança em Deus, embora com a promessa de uma visão de futuro de todas as coisas, e, consequentemente, também de nós mesmos, do curso da sua própria vida, "sub specie aeternitatis", uma visão que através da qual toda a obscuridade desaparecerá. Mas isso tudo é religião em vez de metafísica, e pode não ser satisfatório para todos.

Mas vamos voltar para Jaspers. Os pontos fracos de sua teoria, nos quais as ideias hindus podem ser úteis, dizem a respeito à natureza daquela "escolha", que deve ter sido feita no plano não-temporal e que nos permite explicar a coexistência, dentro da existência, do finito e infinito. Acima de tudo, o lugar desta escolha, continua ser totalmente obscuro - não menos do que em Kant e Schopenhauer, que já tinham formulado algo do tipo com suas teorias sobre o "caráter inteligível".

Essa obscuridade é inevitável, devido a praticamente não-existência, na filosofia ocidental e na religião em si, da doutrina da pré-existência e dos múltiplos estados do ser. Que, antes do nascimento, existia não somente a vontade de Deus, criando a sua boa vontade almas a partir do nada; que, em vez disso, preexistiu uma certa consciência-entidade, a qual a existência de cada um de nós na terra é sua manifestação - tudo isto é "terra incognita" para a maioria dos filósofos ocidentais e teólogos: eles não sabem nada deste tipo.

Mas, sem referências desse tipo, toda a teoria existencialista sofre de uma obscuridade inicial e básica. Aliás, deve ser notado que falamos da teoria da pré-existência e não de "reencarnação" ou karma, como os teosofistas espalharam no fim do último século em certos grupos espiritualistas ocidentais. A primeira teoria não tem nada em comum com a segunda -uma possui um caráter metafísico e a outra um caráter popular- e, como já expliquei em várias ocasiões, quando tomada literalmente, nada explica, e é, na verdade, um erro.

A partir da primeira falta, a segunda é derivada, que se refere ao senso do ato pelo qual nós quisermos ser o que nós nos encontramos ser na terra e no tempo, ou seja, o senso da escolha ou opção transcendental, que toma espaço na vontade Divina e que também é a pre-condição necessária para falar de alguma responsabilidade e para justificar o preceito de fidelidade ao que somos.

Nisso, Jaspers só observa uma falha: ter desejado ser indivíduos significa ter desejado limitar a nós mesmos; mas, limitar nós mesmos significa pecar, pecar contra o infinito, contra o incondicionado, que é fatalmente negado em todas as possibilidades, em todas as maneiras de ser excluído do horizonte dessa única vida definitiva. E com esse pecado está naturalmente associado a angústia, a famosa "angustia existencial" do Ego.

Isso certamente é uma ideia estranha, que traz consigo um certo pessimismo, o qual encontramos vestígios nos primórdios da filosofia grega e até mesmo no Orfismo. Se no início das coisas, lá no alto, no outro lado do tempo, houve verdadeiramente um poder livre, nós não conseguimos entender qual "falha", qual "pecado" pode haver para que permitisse ter feito uma escolha, por ter decidido a favor de um determinado modo de existência e não de outro. Assim, que outras possibilidades devem ter sido excluídas e negadas, é lógico e inevitável, mas não sabemos a quem essa liberdade deve responder.

Em qualquer caso, falar aqui de "pecado" é um verdadeiro absurdo. Se assim for, deveríamos considerar pecado - gerando uma angústia existencial - o fato de, possuindo uma noite livre, eu preferi gastá-la em uma casa noturna, que obviamente me impede de fazer outras coisas igualmente possíveis, como ir ao teatro, ou a uma palestra, ou permanecer em casa estudando, assim por diante.

O verdadeiro infinito, para nós, e para qualquer metafísica de verdade, não é aquele que, por assim dizer, se está condenado a sua infinitude extática e indeterminada, mas é aquele que, deseja ser, permanecendo incondicionado em todos nossos atos, mantendo seu sentido de liberdade primordial e do estado incondicionado em tudo o que ele quis e em que se tornou. Assim, uma vez que entramos no domínio da temporalidade, devemos ter em mente aquilo que os Orientais chamam de lei concordante de ações e reações, e que os hindus chamam de karma, mas em seu verdadeiro sentido, não aquele dado pelos teosofistas e seus popularizadores.

Seria suficiente entrar nesta ordem de ideias para dar as noções existencialistas referidas um significado totalmente diferente, para retirar-lhes tudo que é "crise", "angústia", "invocação", ou dispersão em uma ação arbitrária; tudo passaria em um plano calmo mais elevado, de transparência, de decisão. E o preceito de ser nós mesmos, de fidelidade a nós mesmos e para com a "posição" que nós temos no reino da temporalidade, adquiriria um esclarecimento - graças à sua relação com uma ordem verdadeiramente incondicionada e supra-individual.


Em verdade, a visão hindu correspondente - que o antigo ocidente já sabia (Plotino, por exemplo, ou até mesmo Platão, antes dele) - pode agir nesse sentido sobre os existencialistas que realmente querem viver seus problemas, e este seria um dos pontos significativos de um possível encontro entre o pensamento do Oriente e do Ocidente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário