Em um ensaio anterior, destaquei a importância de esclarecer
alguns pontos em relação as doutrinas tradicionais do leste e certas tendências
intelectuais bastante avançadas que emergem no Ocidente. Então disse que, em
muitos casos, um conhecimento sério - e não um conhecimento amador das
doutrinas - pode muito bem servir para complementar as tendências,
libertando-as de seu aspecto de opiniões de natureza puramente individual e
especulativa, e também de tudo que está afetado por uma atmosfera de crise, tal
como se encontra, de fato, a nossa civilização ocidental moderna. Dessa forma,
seria possível elevar a partir dessas intuições ocasionais, atingidas pelos
europeus que estão lutando em um estado de profundo trabalho crítico, em um
plano de um conhecimento objetivo e supra-pessoal, que deveria ser definido
como "sabedoria", em vez de "filosofia".
Eu desejo tratar aqui, neste sentido, com certos aspectos de
uma tendência de pensamento, muito na moda hoje em dia, conhecido como
"existencialismo", selecionando como contrapartida a ele a doutrina
hindu de "svadharma". [seu próprio dharma ou dever em relação a uma
maior ordem cósmica]
Em relação ao existencialismo, naturalmente, não
considerarei sua forma excêntrica e boêmia, de caráter predominantemente
literário, que infelizmente, são os responsáveis pela nova popularização desta
tendência. Ao contrário, farei referência ao existencialismo sério, filosófico,
que tomou forma mesmo antes da Segunda Guerra Mundial e que, depois de Søren
Kierkegaard (e em certos aspectos Nietzsche), teve como seus principais
intérpretes Jaspers, Heidegger e Barth. Tentarei, primeiramente, expor algumas
ideias básicas do existencialismo de maneira mais acessível. Esta não é uma
tarefa fácil em um ensaio curto, tendo em conta a natureza peculiar e sua
terminologia quase esotérica dos existencialistas, em quem muitas palavras
frequentemente são usadas com significados totalmente diferentes de sua forma
usual.
A base do existencialismo reside na concepção de
"existência". Essa expressão não deve ser tomada no sentido mais
comum e simples. Existência, de acordo com Kierkegaard, significa o ponto
paradoxal e contraditório, em que o finito e o infinito, o temporal e o eterno
estão implícitos e se encontram. A existência aqui, naturalmente é aquela do
Ego, do ser individual, que é, portanto, considerada uma síntese de elementos
contraditórios. Sua situação espiritual é tal que ele não pode se afirmar (o
ser finito que existe no tempo), sem também afirmar o "outro" além
dele próprio (o incondicionado, o temporário e o ser absoluto); mas, por outro
lado, ele não pode afirmar o transcendente sem também afirmar ele mesmo, o ser
existente no tempo. Duvidar de um desses lados significa também duvidar do
outro. Essa é a premissa geral do existencialismo, assim afirmado pelos seus
principais intérpretes, de Kierkegaard até Lavelle, de Barth até Jaspers. Aqui
é adequado apontar a harmonia dessa linha de pensamento com os pontos de vista
do hinduísmo tradicional. Em primeiro lugar, existe uma questão de método: o
existencialismo procura alcançar uma intimidade no centro do indivíduo, que
deve ao mesmo tempo ter um valor de uma experiência metafísica. Tal método pode
ser considerado aquele do conjunto do ioga upanixádico e também da filosofia budista,
a qual podemos aplicar a formula de um "experimentalismo
transcendental". Em segundo lugar, é óbvio que que este ponto de encontro
ambíguo entre o centro do ser finito e o incondicionado de certa forma nos
lembra de atma, que apresenta características reais, por assim dizer, de uma
"transcendência imanente", de algo que é o Ego, e ao mesmo tempo o
Super-Ego, o Brahman eterno.
No entanto, o paradoxo da "existência", entendido
no sentido mencionado acima, toma forma de um problema. Encontramo-nos, por assim
dizer, diante de uma posição insustentável de equilíbrio instável, que deve ser
resolvido em função de um ou de outro dos termos, que se encontram no
indivíduo, mas que parecem excluir, bem como a contradizerem entre si: o
condicionado e o incondicionado, o temporal e o não-temporal.
As duas soluções possíveis correspondem as duas direções
seguidas pelo existencialismo, em relação das quais posso mencionar os nomes de
Heidegger e Sartre por um lado, e Jaspers e acima de tudo Barth, de outro.
A solução adequada à filosofia de Heidegger é aquela do
homem que tenta encontrar o incondicionado no transitório. O ponto, de acordo
com esse pensador, apresenta-se da seguinte forma: a existência no tempo
significa existir como um indivíduo e como um ser individualizado. Mas, a individualidade significa particularidade, significa a afirmação e a assunção
de um determinado grupo de possibilidades, com a exclusão de outras, e o
conjunto de todas outras; mas essas subsistem, elas vivem dentro do indivíduo,
elas constituem o senso do infinito dentro dele, e tendem a encontrar
expressão, para que se realizem. Isso determina o movimento do Ego no tempo, um
movimento concebido no sentido de sair de nós mesmos (de nossa própria
particularidade definida), como uma tendência para realizar tudo aquilo que nós
excluímos de nós mesmos, para viver com elas como uma sucessão de experiências:
uma sucessão que se desenvolve no tempo, e que deve representar o substituto
para a totalidade, para tudo aquilo que o indivíduo, enquanto tal, não pode ser
simultaneamente. Naturalmente, a infinitude de possibilidades corresponde
necessariamente com a infinitude do tempo, e tudo isso nos dá, em certa medida,
um sentimento que estamos perseguimos a nossa própria sombra: uma busca que
nunca alcançamos, sem nunca termos inteiramente a posse de si mesmo, a fim de
acalmar e resolver a antítese e a "angústia" própria da existência.
Esta solução de Heidegger termina, assim, em uma espécie de
justificação metafísica da santificação daquilo que, em termos hindus, pode ser
chamado de samsara, a consciência samsarica. Isto parece-nos uma posição
perigosa, na medida em que tende para as diversas filosofias ocidentais
modernas de imanência, de "Vida", de tornar-se, uma posição que, em
nossa opinião, dificilmente pode ser vinculada a uma concepção tradicional do
mundo. Na verdade, um pessimismo dissimulado e sombrio paira sobre toda a
filosofia de Heidegger.
A segunda tendência existencialista, aquela de Jaspers e
Barth, se encontra em uma situação diferente. Partindo de premissas mais ou
menos semelhantes, a importância é dada ao conceito que, se o indivíduo
representa uma possibilidade particular em meio de uma infinidade de outras,
que estão fora dele, essa possibilidade definitiva emana de uma escolha. Esta escolha,
naturalmente, nos leva a algo anterior ao tempo e anterior a existência dentro
do tempo. A solução da antítese é dada pela "ética da fidelidade":
que, estando nós no tempo, devemos assumir, devemos considerar "a nossa
essência como idêntica a nossa própria existência", devemos permanecer
fiéis ao que somos, tendo o pressentimento de que algo é eterno, que, através
de nós mesmos, torna-se "temporalizado" em si mesmo, que tudo que
aparece como uma necessidade, como um destino, como dificuldade, nos remete a
algo desejado, a algo que só é assim por que ele escolheu que fosse assim,
assumindo essa natureza particular, excluindo qualquer outra natureza possível.
Assim, juntamente com o preceito de fidelidade a nós mesmos,
existe, no existencialismo, também um preceito de esclarecimento (Erhellung). A
regra de vida desse existencialismo não é a busca por algo mais, a dispersão de
nós mesmos no infinito, na problemática das perspectivas que se apresentam no
mundo exterior, e menos ainda significa uma busca no tempo - como Heidegger
clama - da miragem do incondicionado que sempre escapa; devemos então assumir
nossa própria perspectiva ou visão de mundo, aprender e compreender o seu
significado, que é equivalente a sua raiz transcendental, aquela vontade pela qual
eu sou o que sou, e que, na existência nós possamos perceber apenas com base em
seus traços e seus efeitos. Assim, então, a existência aparecerá apenas como
julgamento no tempo de algo que existe antes do tempo, e cada necessidade ou
finitude revelar-se-á como a consequência de um ato primordial de poder livre.
Aqueles que conhecem a doutrina do dharma e do svadharma não
pode deixar de notar as analogias com essas visões existencialistas. De acordo
com a concepção hindu, cada ser tem sua própria natureza. Não é por acaso que
somos o que somos e não outra coisa. Para essa natureza - a menos que sentimos
uma vocação para uma subida superior - devemos permanecer fiéis; fidelidade a
nossa própria natureza, qualquer que seja, é o mais elevado culto que podemos
render ao Espírito Supremo.
Assim, para ser nós mesmos devemos assumir nossa própria
posição e tender a nossa própria perfeição individual, sem que os interesses
exteriores nos distraiam ou seduzam. Não há natureza própria, dharma, superior
ou inferior a outra, se tomamos - como devemos tomar - o infinito, aquilo que
está além do tempo, como medida. Dessa forma, trair seu próprio dharma - a lei
da natureza de si mesmo - assumir o dharma - o jeito de ser, a lei, o caminho -
de outro é um erro e culpa: culpa, não no sentido moral, mas no sentido
ontológico. É um ferimento contra a própria ordem cósmica - rta - equivalente a
uma violência contra nós mesmos; porque, assim, entramos em contradição com nós
mesmos, desejamos ser aqui, no tempo, algo diferente daquilo que nós desejamos
ser além de todos os tempos. O efeito disso é a desintegração, e, por
conseguinte, uma descida na hierarquia dos seres (simbolicamente, o inferno). Estes
são conceitos tradicionais hindus que encontramos expressos nas Leis de Manu e,
de uma forma ainda mais definida, no Bhagavad Gita. Sabemos que na Índia elas
não permaneceram na mera teoria e filosofia, mas exerceram uma forte influência
na vida individual e coletiva, constituindo, entre outras coisas, a base ética
e metafisica do sistema de castas, aquele sistema que é tão pouco compreendido
por ocidentais (embora na Idade Média houve algo do mesmo tipo), enquanto que
está prestes a ser posta de lado, pelos orientais modernizados.
Mas, na visão geral do homem e do mundo, em que a doutrina
svadharma está enquadrada, existem dimensões que não faltam no existencialismo;
é mais integral que esse ponto duvidoso da filosofia ocidental.
Neste contexto Barth deve ser esquecido. Ele termina em um
teocentrismo que lhe permite conectar o existencialismo com a teologia cristã.
Esta teologia, como sabemos, com o tomismo defendeu a teoria da "nossa
própria natureza" - natura própria - e a ética de fidelidade à essa
natureza, a qual é diferente em cada homem e é desejada por Deus. Mas aqui, em
nossa opinião, nós estamos nos elevando demais, e a referência à divindade
teísta, cuja vontade deve ser responsável por estarmos nesse modo particular, é
resumir demais a explicação. O problema existencialista só é resolvido pela fé,
pela confiança em Deus, embora com a promessa de uma visão de futuro de todas
as coisas, e, consequentemente, também de nós mesmos, do curso da sua própria
vida, "sub specie aeternitatis", uma visão que através da qual toda a
obscuridade desaparecerá. Mas isso tudo é religião em vez de metafísica, e pode
não ser satisfatório para todos.
Mas vamos voltar para Jaspers. Os pontos fracos de sua
teoria, nos quais as ideias hindus podem ser úteis, dizem a respeito à natureza
daquela "escolha", que deve ter sido feita no plano não-temporal e
que nos permite explicar a coexistência, dentro da existência, do finito e
infinito. Acima de tudo, o lugar desta escolha, continua ser totalmente obscuro
- não menos do que em Kant e Schopenhauer, que já tinham formulado algo do tipo
com suas teorias sobre o "caráter inteligível".
Essa obscuridade é inevitável, devido a praticamente
não-existência, na filosofia ocidental e na religião em si, da doutrina da
pré-existência e dos múltiplos estados do ser. Que, antes do nascimento,
existia não somente a vontade de Deus, criando a sua boa vontade almas a partir
do nada; que, em vez disso, preexistiu uma certa consciência-entidade, a qual a
existência de cada um de nós na terra é sua manifestação - tudo isto é
"terra incognita" para a maioria dos filósofos ocidentais e teólogos:
eles não sabem nada deste tipo.
Mas, sem referências desse tipo, toda a teoria existencialista
sofre de uma obscuridade inicial e básica. Aliás, deve ser notado que falamos
da teoria da pré-existência e não de "reencarnação" ou karma, como os
teosofistas espalharam no fim do último século em certos grupos espiritualistas
ocidentais. A primeira teoria não tem nada em comum com a segunda -uma possui
um caráter metafísico e a outra um caráter popular- e, como já expliquei em
várias ocasiões, quando tomada literalmente, nada explica, e é, na verdade, um
erro.
A partir da primeira falta, a segunda é derivada, que se
refere ao senso do ato pelo qual nós quisermos ser o que nós nos encontramos
ser na terra e no tempo, ou seja, o senso da escolha ou opção transcendental,
que toma espaço na vontade Divina e que também é a pre-condição necessária para
falar de alguma responsabilidade e para justificar o preceito de fidelidade ao
que somos.
Nisso, Jaspers só observa uma falha: ter desejado ser indivíduos
significa ter desejado limitar a nós mesmos; mas, limitar nós mesmos significa
pecar, pecar contra o infinito, contra o incondicionado, que é fatalmente
negado em todas as possibilidades, em todas as maneiras de ser excluído do
horizonte dessa única vida definitiva. E com esse pecado está naturalmente associado
a angústia, a famosa "angustia existencial" do Ego.
Isso certamente é uma ideia estranha, que traz consigo um
certo pessimismo, o qual encontramos vestígios nos primórdios da filosofia
grega e até mesmo no Orfismo. Se no início das coisas, lá no alto, no outro
lado do tempo, houve verdadeiramente um poder livre, nós não conseguimos
entender qual "falha", qual "pecado" pode haver para que
permitisse ter feito uma escolha, por ter decidido a favor de um determinado
modo de existência e não de outro. Assim, que outras possibilidades devem ter
sido excluídas e negadas, é lógico e inevitável, mas não sabemos a quem essa
liberdade deve responder.
Em qualquer caso, falar aqui de "pecado" é um
verdadeiro absurdo. Se assim for, deveríamos considerar pecado - gerando uma
angústia existencial - o fato de, possuindo uma noite livre, eu preferi
gastá-la em uma casa noturna, que obviamente me impede de fazer outras coisas
igualmente possíveis, como ir ao teatro, ou a uma palestra, ou permanecer em
casa estudando, assim por diante.
O verdadeiro infinito, para nós, e para qualquer metafísica
de verdade, não é aquele que, por assim dizer, se está condenado a sua
infinitude extática e indeterminada, mas é aquele que, deseja ser, permanecendo
incondicionado em todos nossos atos, mantendo seu sentido de liberdade
primordial e do estado incondicionado em tudo o que ele quis e em que se
tornou. Assim, uma vez que entramos no domínio da temporalidade, devemos ter em
mente aquilo que os Orientais chamam de lei concordante de ações e reações, e
que os hindus chamam de karma, mas em seu verdadeiro sentido, não aquele dado
pelos teosofistas e seus popularizadores.
Seria suficiente entrar nesta ordem de ideias para dar as
noções existencialistas referidas um significado totalmente diferente, para
retirar-lhes tudo que é "crise", "angústia",
"invocação", ou dispersão em uma ação arbitrária; tudo passaria em um
plano calmo mais elevado, de transparência, de decisão. E o preceito de ser nós
mesmos, de fidelidade a nós mesmos e para com a "posição" que nós
temos no reino da temporalidade, adquiriria um esclarecimento - graças à sua
relação com uma ordem verdadeiramente incondicionada e supra-individual.
Em verdade, a visão hindu correspondente - que o antigo
ocidente já sabia (Plotino, por exemplo, ou até mesmo Platão, antes dele) -
pode agir nesse sentido sobre os existencialistas que realmente querem viver
seus problemas, e este seria um dos pontos significativos de um possível
encontro entre o pensamento do Oriente e do Ocidente.
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