quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Problema da Unidade das Religiões (Jean Borella)

Somos assim levados a afirmar, acima de todas as mensagens divinas, acima de todas as "formas sagradas", uma "unidade transcendente", nos termos de Frithjof Schuon, em que todas as religiões são reintegradas e ultrapassadas em sua verdade universal e supraformal. Sem dúvida, Bruno Berard não chega a definir, como Frithjof Schuon, uma Religio Perennis, uma "meta-religião universal e perene", cujo conteúdo não seria outro senão a doutrina metafísica pura; mas os seguidores de Schuon seriam indubitavelmente tentados a repreendê-lo por isso, julgando que ele não vai até o fim.

No entanto, a questão pode ser colocada: ele deve ir até o fim? Neste domínio, muito raros são aqueles que realmente se questionaram sobre as implicações do pensamento sobre a "unidade transcendente". Percebe-se muito bem o objeto desta doutrina: entende-se como a superação dos particularismos religiosos próprios dos exoterismos, dos particularismos incapazes de imaginar outra forma do divino do que aquele que colore seu próprio horizonte confessional, um horizonte que é naturalmente atado a um sentimento para o absoluto.  Entre os cristãos desenraizados que somos, esta superação beneficia prontamente de uma presunção favorável: rompe com o egocentrismo espontâneo dos crentes e com a conhecida intolerância da Igreja Católica, com seu imperialismo mundano e até com um certo racismo que é difícil livrar-se. Estas são, no entanto, apenas considerações morais que têm apenas uma relação indireta com a verdade. Um ponto de vista mais intelectual consistirá em comparar as religiões umas com as outras a fim de mostrar sua unidade profunda. Muitas vezes realizado, essas comparações levam a alguns resultados. Mas qual é o valor desses resultados com respeito à unidade divina das revelações? Este comparatismo pode ser empregado por historiadores da religião ou filósofos, e isso de várias maneiras. O historiador que identifica analogias entre fenômenos religiosos de origens diversas, se ele quer ir além de uma simples observação e dar um conjunto de significados a essas analogias, deve ainda levá-las em conta. E então ele estará fazendo o trabalho da filosofia. Como no caso de Mircea Eliade, ele verá uma manifestação da unidade de uma consciência religiosa que, sob formas variadas, reage de forma mais ou menos de maneira idêntica através do tempo e do espaço. Falando como Gilbert Durand, existem "estruturas antropológicas da imaginação"; a imaginação é estruturada de acordo com categorias simbólicas a serem descobertas em toda parte. Mas esta não é a doutrina da unidade das revelações. O ponto de vista filosófico pode ir mais longe na sua análise da consciência religiosa, além de uma fenomenologia das formas concretas das religiões, sempre tomadas num contexto cultural definido. O objetivo do filósofo será, então, identificar, ouso dizer, a forma geral (e, portanto, abstrata) de toda consciência religiosa possível: Hegel, declarando que a religião é a forma simbólica assumida pela consciência do Absoluto, ilustra esse ponto de vista notavelmente bem. Mas isto é a unidade das revelações? A perspectiva de Guenon-Schuon acrescenta algo que consiste em colocar esta unidade como uma obra divina, como um efeito desejado por Deus, ou, se "Deus" parece uma noção muito "abraâmica", digamos pelo "Céu" ou pelo "Princípio Supremo". A verdade da unidade não é mais da esfera psicológica ou filosófica, é da ordem "teológica", é uma verdade sagrada. As teses de Eliade ou de Hegel são a-religiosas por natureza, ou, em qualquer caso, desejam ser independentes de todo Credo. A tese de Guenon-Schuon é fundamentalmente "religiosa", se pelo menos aceitamos usar este adjetivo em seu sentido mais geral (em oposição a Guenon).


Isto significa que não é fruto de uma observação neutra a posteriori, mas corresponde a uma espécie de fé. Evidentemente, será questionado que não se trata de fé, mas de evidência metafísica e, portanto, uma certeza intelectual que está envolvida aqui, o que é possível; mas o que deve ser incontestável é que tal certeza e evidência são bastante incomuns, uma vez que, até onde sei, esta doutrina, com toda a sua força e precisão, foi formulada muito recentemente na história da humanidade e, portanto, não há dúvidas que foram sancionadas pela razão ordinária. Em outras palavras, não há nada no comparatismo fenomenológico ou na análise filosófica que imponha necessariamente a conclusão de uma unidade de revelações desejada por Deus, mesmo que muitos fatos sagrados ou discursos epistemológicos sugiram. Algo mais é necessário, um salto pelo qual o espírito se situa desde o princípio nas profundezas da Sabedoria Divina e considera as várias revelações desde sua Causa suprema e, portanto, a priori. A atitude do homem em relação à revelação é receptiva. Sobre o que transpira este lado do ato da revelação, "do ponto de vista de Deus", o homem não sabe nada: por que Deus assumiu tal forma? Por que em tal momento? Por que em tal lugar? - essas são perguntas sem respostas, ou questões que não nos dizem respeito. Mas a doutrina da unidade ultrapassa este limite, estabelece-se no segredo de Deus, e vê as religiões de cima para baixo.

Esta atitude pode aparentar uma pretensão ilimitada. E, no entanto, sente-se justificada, em primeiro lugar, porque pensa ir direto ao fim de sua lógica, até o fim das necessidades da compreensão metafísica, e segundo, porque tendo feito isso pensa-se que se está com Deus. A pluralidade de religiões, que é um fato incontestável, é de fato um teste para o crente. Se apenas minha religião é verdadeira, por que Deus permitiu que houvesse outras? A doutrina da unidade atenua este escândalo ou, pelo menos, nos permite acreditar que há uma ciência que a explica perfeitamente: todas as religiões dizem a mesma coisa sob diferentes formas. Para dizer a verdade, provar que tal é realmente o que ocorre é certamente uma tarefa gigantesca que nunca foi e nunca será empreendida. Nesse sentido, devemos contentar-nos com algumas conexões, seja em pontos essenciais ou secundários, ou pelo menos julgados como tal em ambos os casos por aqueles que os fazem. Observe, no entanto, que no cristianismo há também alguns elementos centrais, que o próprio Guenon indica que não existem equivalentes nas outras religiões, como quando ele mostra em A Grande Tríade (cap.1) que a trindade cristã não corresponde exatamente a qualquer outro ternário tradicional, ou, mais uma vez, quando ele afirma que os sacramentos cristãos são "algo cujo equivalente exato não é encontrado em outro lugar" (Perspectivas sobre a Iniciação, Cap. 23, p.153). Mas por fim, apesar dessas dificuldades, a tese da unidade será admitida com confiança. O que resta, no entanto, é perguntar-se por que Deus quis esta diversidade. Que não é apenas uma pluralidade pura e irredutível e apresenta-se, ao contrário, como múltiplas visões de uma mesma Realidade, isto constitui, em muitos aspectos, um ganho considerável de inteligibilidade, pelo menos em princípio. Mas por que Deus não poderia revelar-se sob uma única forma, ou de acordo com um único evento fundador, que seria então diversificado, mas com referência à unicidade fundadora?

René Guénon e Frithjof Schuon 

Aqui precisamos diferenciar as respostas que Guenon e Schuon trazem a essas questões. Para dizer a verdade, Guenon não parece fornecer razões metafísicas para a pluralidade de religiões, ou, para respeitar suas formulações, a pluralidade de "formas tradicionais" : para ele isso é um fato, e não é senão uma conseqüência dos diversos cenários humanos aos quais a Tradição Primordial (a revelação primeira) deve necessariamente se adaptar. Há, portanto, causas cosmológicas para explicar essa pluralidade. Mas, nesse caso, precisamos perguntar: por que existem humanidades culturalmente diferentes? Existem culturas diferentes que impõem as diferentes formas de revelação - a mensagem divina abraça a forma de seu receptáculo - ou existem revelações diversas que comunicam suas formas aos grupos humanos a quem elas são dirigidas, de tal forma que a diversidade cultural seria um efeito da diversidade de formas reveladoras? Seja como for, direi que, para Guenon, a diversidade é secundária e a unidade primordial. E assim ele está menos interessado naquilo que poderia ser a razão metafísica do pluralismo religioso, em seu "por quê", do que em seu "como", que é a maneira em que sua manifestação histórica deve ser entendida. Para responder a esta questão Guenon formula uma teoria extraordinária, a teoria do Rei do Mundo. Esta teoria realiza à perfeição um conceito "administrativo" da unidade das religiões. Todas as religiões são modificações secundárias de uma Tradição primordial, cujo depósito é confiado a um indivíduo misterioso, o Rei do Mundo, cercado por todo um conjunto de "funcionários" sagrados que asseguram a relação do Centro primordial, situado em algum lugar Subterrâneo na Ásia, com as várias formas tradicionais. Neste modelo verdadeiramente mitológico, componente-chave do edifício Guenoniano, a continuidade horizontal tradicional prevalece sobre as descontinuidades reveladoras e verticais.

É por isso que o conceito de "tradição" (e regularidade tradicional) é tão importante para Guenon. O advento de uma nova revelação supõe, no entanto, uma intervenção divina no tecido cultural de tal ou qual humanidade, um tecido que não pode deixar de ser despedaçado em alguns aspectos; mas, na teoria de Guenon, tudo transparece como se a iniciativa divina estivesse em conformidade com as regras que regulam a economia reveladora universal, cujo administrador é o Rei do Mundo. Chega-se ao ponto em que revelações como o cristianismo ou o budismo que, não parecendo obedientes ao Dharma, à Norma universal, são consideradas por alguns dos mais fiéis e conhecedores guenonianos como "heresias formais do ponto de vista da Tradição" (Charles-André Gillis, Introduction à l'enseignement et au mystère de René Guénon, p.87). Essa conclusão surpreendente, que exclui formalmente da tradicional "ortodoxia unânime e universal", duas grandes religiões, é, no entanto, governada por uma lógica rigorosa. Certamente o próprio Guenon não chegou a esta conclusão, pelo menos não explicitamente com respeito ao cristianismo, embora possa ser perguntado, do ponto de vista guenoniano, o que resta de regularidade tradicional numa religião que perdeu sua parte esotérica e interrompeu toda conexão com o Rei do Mundo. Reciprocamente, seria correto perguntar: se tal conclusão pode ser deduzida do sistema, isso não desqualifica o sistema? Deixarei de lado esta questão e simplesmente direi que a doutrina do Rei do Mundo de alguma forma realiza a segunda hipótese que eu previ anteriormente: um evento fundador único (a descida à Terra da Tradição primordial) e múltiplas modulações desta tradição única.

Agora, nos resta perguntar: como Guenon sabe tudo isso? Como ele é o único, por seu próprio acesso (Rei do Mundo, cap. 1), a ter falado sobre isso com tanta precisão, devemos supor que ele estava em contato mais ou menos direto com o Centro Supremo que o conferiu como seu porta-voz, a menos que ele, de uma maneira ou de outra, seja idêntico ao Rei deste misterioso Centro. De tal forma vemos onde a doutrina da unidade das revelações pode conduzir quando se pretende examinar as possíveis condições de sua formulação. Para justificar Guenon, alguns dirão que tudo o que diz respeito ao Rei do Mundo é da ordem mítica. Mas não há dúvida de que Guenon apresentou todo esse simbolismo como sendo bem real.

Muito diferente é a forma assumida pela doutrina da unidade para Schuon. Se a continuidade horizontal da Tradição prevalece com Guénon sobre as descontinuidades verticais, é exatamente o oposto com Schuon, que rejeita, além disso, a concepção administrativa desta unidade sob a forma da jurisdição de um Rei do Mundo em cuja existência ele não crê. De maneira geral, ele está mais atento à diversidade qualitativa fenomenológica das religiões, bem como à relação direta que cada uma mantém com sua origem divina. Cada religião é o fruto de uma iniciativa divina que, de certa maneira, rompe com a trama das tradições anteriores e, portanto, não precisa de nenhuma jurisdição para sancioná-la: Deus sabe o que está fazendo. E mesmo quando isso envolve, não uma nova revelação, mas uma nova interpretação de uma religião existente, por exemplo, o luteranismo com respeito ao catolicismo, o mesmo princípio é utilizado: o evangelismo luterano é reconhecido e abençoado pelo céu na medida em que corresponde a uma possibilidade arquetípica incluída em na essência do cristianismo. A jurisdição do princípio da transmissão apostólica cessa onde o princípio de uma correspondência arquetípica intervém (Cristianismo/Islã Bloomington: World Wisdom Books, 1985, pp. 15-16).

Examinemos agora os argumentos que ajudam Schuon a estabelecer a priori a necessidade de uma pluralidade de formas religiosas (A Unidade Transcendente das Religiões, 1984, pp. 19-20). Podem ser resumidos da seguinte maneira: nenhuma forma é única, pois, sendo uma manifestação limitada, toda forma implica uma pluralidade de formas análogas. Esta dialética parece algo aproximado e nem sempre conclusivo. Observar as religiões como formas variadas de uma mesma espécie (a espécie "religião") é o ponto de vista da ciência das religiões ou da filosofia. Isso supõe que alguém esteja em posse do conceito geral de religião abstraído de um conhecimento real das religiões existentes; mas, reciprocamente, para reconhecer tal manifestação como pertencente à espécie "religião", é necessário estar já em posse de seu conceito geral. Ora, tal conceito apareceu apenas no final da história das idéias (por volta do terceiro século depois de Cristo): as línguas antigas (hebraico, sânscrito, grego, latim, etc) não tinham consciência disso (o latim religio significava apenas "piedade"). Portanto, do ponto de vista de uma determinada religião, não existe uma "forma religiosa". Assim, falar de "forma religiosa" é já se situar fora das religiões e pressupor sua multiplicidade. Isto não demonstra sua necessidade.


Deixarei de lado o fato de que Schuon também trouxe, para explicar essa multiplicidade, a diversidade cultural dos grupos humanos, mas se pergunta-se: onde Schuon está realmente se situando quando fala de formas religiosas? Está no nível conceitual, como é feito pela ciência e pela filosofia? Isso não é impossível, mas isso não diz nada sobre a unidade divina dessas formas: um incrédulo pode estar bastante interessado na ciência ou filosofia das religiões e encontrar sua unidade, por exemplo, na identidade da imaginação humana ou do inconsciente de que elas são a expressão; uma teoria da religião não é necessariamente religiosa. Ainda mais, deve ser concedido, ao contrário, que, por si só, uma teoria deve ser religiosamente neutra na medida em que permanece no nível conceitual. Sem dúvida, há o caso de uma teoria religiosa desenvolvida a partir do ponto de vista de uma religião determinada: por exemplo, a teoria de Maritain da "religião natural" em oposição à religião revelada (judaísmo e cristianismo): esta é claramente uma teoria religiosa, mas não de todas religiões, uma vez que não abrange o judaísmo e o cristianismo.Uma teoria religiosa das religiões implica que esta está situada além de todas as religiões, e situado ali religiosamente. Em suma, a teoria inevitavelmente se torna a religião: torna-se a Religião Perene (Light on the Ancient Worlds (Bloomington: World Wisdom Books, 1984 pp. 136-144), que Schuon mais tarde chamará Sophia perennis. Falar de uma "unidade transcendente" (e não de uma unidade imanente) é dizer que a unidade das religiões está em Deus, no Verbo divino - que é auto-evidente e nada original - ou é postular uma Religião suprema, uma religião das religiões além das religiões. E postulá-la como tal, explicando seus axiomas fundamentais (distinção do Absoluto do relativo, concentração no Absoluto, etc.), é provar que se tem acesso a esta Sophia Perennis, e, portanto, tal pessoa é seu profeta, ou mesmo o revelador. Tal é a lógica estrita do curso de Schuoniano, e acho que Schuon assumiu todas as suas consequências.

Poderia agora ser perguntado: o que há de religioso nessa Religião perene? Qual é o seu conteúdo? Certamente, os poucos princípios que Schuon a compôs (discernimento do Real da ilusão e concentração no único Real) têm grande poder de síntese. Mas tais princípios também estão bastante próximos de um diagrama abstrato de toda a religião, em resumo, de seu conceito. Quando Hegel define a religião como a 'consciência do Absoluto', ele está dizendo exatamente o mesmo, mesmo se em muitos pontos, o pensamento religioso dos dois pensadores diferem consideravelmente e sem dúvida não para a vantagem de Hegel: Schuon possui um conhecimento das religiões que Hegel não teve, e permanece fundamentalmente religioso e "místico". Mas, de fato, o clima intensamente espiritual da doutrina de Schuon é atribuído menos, parece-me, à própria natureza da Religio perennis, como ele moldou essa noção - e ele é o primeiro a ter feito isso - do que as religiões já existentes (cristianismo, islamismo e a tradição nativa americana tanto quanto sua própria subjetividade está em jogo), da qual ele toma emprestado esse clima, tonalidade ou atmosfera, e ele transpõe esteticamente para o nível de uma Sophia perennis (re)constituída e, portanto, para o nível de uma abstração. E essa é a dificuldade e a ambiguidade de seu projeto: por sua sagrada aparência promete mais do que pode dar. Pois o que é verdadeiramente religioso em uma religião é apenas o que realmente desce do céu, ou seja, o que é revelado por Deus.Toda esta questão se resume ao seguinte ponto: ou se admite que a Religio perennis é revelada - e que revelação! da unidade transcendente de todas as revelações, o que levaria, em certos aspectos, a fazer Schuon igual ou mesmo superior a outros reveladores religiosos (mas Schuon não vai tão longe) - e, então, de fato, possui um caráter religioso ou não, e nesse caso tem apenas o "perfume" da religião, e não a sua substância. 

Por todas estas razões, parece necessário renunciar à tese de uma unidade transcendente de religiões, quer esta unidade seja a de uma tradição primordial confiada em depósito ao Rei do Mundo, quer seja formulada com os atributos da Religio Perennis schuoniana e identificado com o esoterismo "absoluto" ou quintessencial, para se distinguir do esoterismo relativo ou confessional (como o sufismo ou a Cabala), que só prolonga tal ou tal religião interiormente. Esta tese deve ser renunciada porque, em sua forma guenoniana e sua forma schuoniana, leva a conseqüências extravagantes e excessivas. [...]



Trecho do artigo "The Problematic of the Unity of Religions" por Jean Borella






sexta-feira, 12 de maio de 2017

O Oriente Pericorético e o Ocidente Aristotélico (James L. Kelley)

A união participativa das duas naturezas de Cristo (cristologia), espelhada na participação de Deus e do homem (soteriologia), é análoga à união da alma com o corpo no homem (antropologia). O homem não é primariamente uma alma desencarnada; antes, ele é inteiramente alma e inteiramente corpo. Os escritores patrísticos em várias obras afirmam inequivocamente que a alma é o que é invisível em relação ao corpo, e o corpo é o que é visível em relação à alma. A Encarnação do Logos é participação por excelência; a Encarnação é a participação arquetípica na qual todas as outras instâncias de comunhão são preconizadas: a coerência alma-corpo do homem; a comunhão do homem com outros seres humanos; a interpenetração do homem com o mundo dos seres criados; e a divinização do homem, ou seja, sua participação na própria vida de Deus.

Então, como e por que o cristianismo ocidental, que começou com a mesma visão comunal / participativa de Deus, o homem e o cosmos como aquela do Oriente cristão, desviou-se desse caminho comum? Alguns teólogos ortodoxos modernos que abordaram a questão da origem do cisma entre o Ocidente e o Oriente cristão têm destacado os ensinamentos de Agostinho de Hipona como a base do desvio. Sherrard concorda que os ensinamentos deficientes de Agostinho sobre o pecado e o livre arbítrio impediram uma concepção ortodoxa e completa da cristologia (e, portanto, da antropologia); ele também não esquece de mencionar os efeitos mutilantes que a formulação agostiniana de "graça preveniente" teve sobre os sucessores ocidentais do bispo de Hipona até os dias de hoje. No entanto, o ponto histórico central apontado por Sherrard é a irrupção da filosofia de Aristóteles na teologia cristã ocidental nos séculos XII e XIII. Pois a teologia escolástica substituiu explicitamente o padrão teológico original - o da experiência pessoal de Deus na vida litúrgica e ascética da Igreja - por um novo critério - o da filosofia de Aristóteles - o resultado foi um afastamento drástico da tradição católica ortodoxa que Sherrard nota que já estava se tornando progressivamente enfraquecida no Ocidente desde o século IV. 

Aristóteles, São Tomás de Aquino e Platão

Um Conto de Duas Unidades: Oriente Pericorético e Ocidente Aristotélico

Já que alguns podem achar evasivo da parte de Sherrard manipular figuras como Platão e Aristóteles (a saber, sua aparente falta de nuance e sua despreocupação geral por normas acadêmicas), pode ser útil recordar as palavras do falecido Rick Roderick: "Eu não leio Kant para encontrar a verdade; leio-o para ver o que posso fazer com ele." Sherrard usa os textos clássicos da filosofia e da teologia neste sentido; ou seja, o seu único propósito ao examinar os escritos dos grandes pensadores do passado era a elucidação daquilo que era para Sherrard o tema metafísico central - a interrelação de Deus com a criação. Desnecessário será dizer que um leitor não aberto ao objetivo geral de Sherrard (ou pelo menos aberto a tentar entender o propósito abrangente de Sherrard) pode sentir que a justiça não está sendo feita a nomes tão imponentes como Heráclito ou Proclo. Com esta advertência em mente, procederemos a delinear as versões de Sherrard do platonismo, do aristotelismo e do tomismo, sendo nosso foco a importância - aos olhos de Sherrard - dos "ismos" envolvidos na crise da Modernidade e pela sua possível solução na Ecologia Sagrada.

De acordo com Platão, as Formas existem no reino inteligível, e podem ser participadas por seres humanos cujas almas purificadas alcançaram uma semelhança com o inteligível. Para Aristóteles, em contraste, as "formas" estão dentro dos seres individuais. O ser humano individual - e de fato, cada ser no universo - está preso dentro de sua essência no esquema aristotélico, aparentemente separado de outras essências enquanto essências. A noção idiossincrática de "unidade" que sustenta a "forma substancial" de Aristóteles é a chave para a compreensão dos desenvolvimentos ocidentais posteriores. Não há lugar para uma unidade de particulares concretos para Aristóteles, uma vez que as unidades são identificadas com objetivos de seres individuais ou fins internos: cada coisa existente tem um telos que é seu próprio destino, seu próprio conjunto de potencialidades que acenam para ser atualizado.

Uma vez que Sherrard baseia sua teologia, acima de tudo, na "união sem confusão" das naturezas divinas e humanas "na pessoa única e indivisa de Cristo encarnado", é fácil entender por que ele contesta tão estridentemente a noção pseudo-monádica da unidade substancial de Aristóteles. As substâncias aristotélicas são unidades porque são impressas em uma única forma que contém dentro de si - em potencial - todas as possibilidades futuras de desenvolvimento. Como tal, não pode haver "substâncias compostas". De fato, as substâncias "não podem ser partilhadas ou participadas". 

Também não deve surpreender que, considerando a ênfase de Sherrard na comunhão e na participação, o universo de Aristóteles lhe pareça uma habitação bastante desoladora. O Logos não pode se tornar Encarnado dentro de seus confins; Cristo não pode tornar-se seu salvador, já que duas naturezas não podem se interpenetrar no universo de Aristóteles sem 1) destruir a natureza humana "inferior", ou 2) criar um tertium quid anormal, um semi-deus que não é nem Deus nem homem, nem incriado nem criado. Além do mais, Deus não pode estar presente no logos de cada ser criado; Cristo não pode ser o Logos para o logoi, para as "predeterminações" incriadas de todos os seres. O universo do Estagirita, visto através do espetáculo Sherrardiano, é mais infernal do que cósmico, uma vez que todos e cada um dos seus seres constituintes estão desprovidos de qualquer coisa parecida com uma natureza comum que permita a methexis, a participação entre, por um lado, o homem e o seu próximo, e,  por outro lado, entre o homem e Deus.

Crianças de Aquino: da Alma Imortal até a Substância Pensante

No século XIII, Tomás de Aquino buscou sistematizar a teologia católica romana reformulando suas doutrinas ao longo de linhas aristotélicas. O que resultou foi nada menos que uma revolução teológica na Europa, um desenvolvimento que, para Sherrard, selou o destino da Igreja Ocidental, e conduziu inexoravelmente para o pesadelo acordado atual da "degradação espiritual, mental e cultural". Já observamos acima que a noção de unidade substancial de Aristóteles não permitia uma cristologia pericorética, em que as naturezas humanas e divinas de Cristo se unissem sem mistura ou confusão na única hipóstase do Logos. Ao considerar suas implicações adicionais para a ecologia, Sherrard observa que a cristologia aristotélica de Aquino não pode incluir nenhum componente Logos-logoi pelo qual "o divino pode verdadeiramente estar presente em todas as coisas sem que essas coisas percam sua própria identidade substancial". Quanto à eficácia da missão salvífica do Cristo de Aquino, Sherrard manifesta a preocupação de que, para Tomás, a deificação da natureza humana de Cristo não parece incluir a contrapartida humana - a deificação do homem e do cosmos sobre a qual Ele é sacerdote. Em vez disso, a Encarnação é "algo que ocorreu apenas no caso único da figura histórica de Jesus".

A completa e desastrosa importância do aristotelismo de Aquino é revelada na antropologia do Dominicano. O Aquino de Sherrard reduz o homem a um corpo-alma no qual o conhecimento do componente alma é do tipo "puramente racional". "Além disso, sem qualquer faculdade através da qual ele pode conhecer e experimentar as coisas, incluindo a si mesmo, como estão em Deus, o homem é forçado a depender de seu conhecimento, incluindo ... o conhecimento espiritual, na percepção sensorial". Tomás de Aquino é revelado como o antepassado do racionalismo iluminista, uma vez que sua antropologia resume-se ao seguinte axioma: o homem tomista é aquele animal que só pode adquirir conhecimento através da raciocinação baseada em dados sensoriais. Aqui, o leitor não pode deixar de detectar tendências de excesso de generalização e exagero no esboço desagradável de Sherrard da teologia de Aquino. A fim de determinar se alguma visão compensatória é oferecida na leitura de Sherrard do grande Dominicano, voltamo-nos ao sóbrio relato de Londoner sobre a "alma imortal" tomista.

A antropologia tripartite cristã ortodoxa do corpo-alma-nous é anulada por São Tomás em um corpo-mente bipartite. Em lugar de um Logos-nous como princípio de comunhão entre a alma e o corpo, São Tomás postula a alma como "substância única do homem, o princípio interior de sua unidade como ser composto". No entanto, Aristóteles sustentou que a alma é material, na medida em que ela existe apenas como a forma da matéria que constitui um dado ser. Uma vez que o ser morre, a forma se dissolve à medida que o corpo do indivíduo se decompõe. Assim, o arcabouço aristotélico que Aquino estava ligado exigia uma alma igualmente material e, portanto, tão corruptível quanto carne e sangue. Para afirmar esta noção aristotélica da alma, negando ainda que a alma se extingue na morte, Tomás de Aquino redefiniu a alma humana como uma "substância espiritual auto-subsistente, que recebe o ato de ser em si mesma, e assim é por natureza imaterial, incorruptível e imortal". O corpo não tem sua própria realidade substancial, existe apenas porque o homem real, a alma imortal, possui certos poderes que só podem ser exercidos somaticamente.

 Mas, sublinha Sherrard, devemos compreender quão drasticamente a concepção de Aquino do corpo-alma difere da visão ortodoxa. Para os ortodoxos, o homem é um corpo-alma cuja integridade até mesmo a morte não pode dissolver totalmente; para o Aquino aristotélico, a alma transcende o corpo, embora a alma tenha necessidade de um corpo para seus propósitos específicos, para o funcionamento de sua própria "idéia" interior. Nas palavras de Sherrard: "[...] Antes de São Tomás era possível pensar na alma como a parte mais importante do homem, depois de São Tomás foi possível pensar o homem sendo completo sem qualquer corpo, porque o que o corpo contribui como matéria orgânica e instrumento material já está presente dentro da alma em uma forma espiritual e como uma exigência espiritual ". 

De fato, o corpo-alma de Aquino vive uma existência bizarra, de duas camadas, que pode ser denominada Nestoriana ou Apolínea, dependendo do ponto de vista de cada um. Considerada à parte do corpo, esta alma tomista contém dentro de sua substância totalmente transcendente e imaterial as razões para sua composição como corpo-alma. O corpo humano de carne e osso não tem razões ou energias próprias que exijam realização para que seu destino ou telos seja atingido. Em vez disso, "na visão tomista o homem é uma função da alma, não a alma uma função do homem". Para Tomás de Aquino, a estrutura da alma é tal que precisa de um tipo de duplo material para desenvolver capacidades corporais que espelham certas capacidades de sua alma. No entanto, uma espécie de assimetria antropológica é introduzida pelo Doutor Angélico, uma vez que a alma contém potências que não têm contrapartida no corpo: "Para São Tomás o homem qua homem ... não possui uma natureza: ele só possui uma história. O homem é apenas um acidente, uma fase, na história de sua alma".

Embora uma ressurreição corporal seja insistida por Santo Tomás, Sherrard permanece preocupado porque a antropologia de Tomás de Aquino não fornece nenhuma razão convincente para que a conjunção alma-corpo continue após a morte. Assim, Sherrard culpa Aquino pela alma fantasmagórica e incorpórea que tem povoado tantos volumes teológicos desde a Idade Média. O desenvolvimento está completo quando chegamos a Descartes, que reproduziu o paralelismo tomista da alma e do corpo, mas com uma importante reviravolta: a estranha estratificação das energias dentro da alma - a justificação frágil de Tomás para um nexo corpo-alma - desapareceu. Sherrard observa com ironia que Descartes saltou sobre Aquinas apenas para recuperar uma noção da essência aristotélica ainda mais pura. A alma humana cartesiana não precisa nem de um corpo, nem de nada que seja exterior a si mesma. Aqui, a análise de Sherrard nos traz para um círculo completo, a res cogitans de Descartes sendo uma recapitulação da substância totalmente auto-suficiente do Estagirita. De fato, Descartes reduz o corpo a uma espécie de fantoche carnal, "inteiramente sem as forças ou qualidades espirituais ou psíquicas" que são naturais da alma .

Se houvesse espaço suficiente, poderíamos seguir os comentários de Sherrard sobre Newton e Boyle, que são vistos como as flores que brotaram do botão cartesiano. A noção de Descartes do corpo do homem como "um autômato hidráulico" empurrado por uma substância pensante que só pode aproximar o cosmos de uma maneira funcionalista prepara o cenário para a Revolução Científica, com seu grito sinistro "Que faça-se Newton!"  e seu exultante eco "Viva la revolution!”

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Efeitos da indulgência sexual sobre o indivíduo e seu meio (Pitrim Sorokin)

1. Efeitos sobre a saúde mental
Pitrim Sorokin

A busca excessiva de prazer sexual causa sérios danos físicos ao indivíduo. A visão atual de que a limitação do impulso sexual é uma importante fonte de doença é, em grande medida, um mito em moda, assim como o seu corolário de que a atividade sexual desenfreada não é prejudicial. Quando aceita sem crítica, essa visão contribui para a disseminação da glutonaria sexual e, portanto, para a deterioração da vitalidade e longevidade de seus devotos.

A sexualidade superdesenvolvida é uma das principais fontes de neuroses e psicoses funcionais. Os distúrbios mentais podem ser causados ​​pelo consumo crônico e excessivo de álcool, que geralmente acompanha a promiscuidade, ou através da sífilis e outras doenças venéreas contraídas através de relações ilícitas.

Mais importante, entretanto, são os distúrbios mentais diretamente resultantes do libertinismo. Fatores constitucionais envolvendo excessos sexuais desempenham um papel significativo no desenvolvimento de distúrbios maníacos-depressivos, esquizofrênicos e paranoicos. Além disso, intensos conflitos internos, emoções violentas, tensões e choques mentais contínuos resultam da ausência de integração de movimentos biológicos, emoções, desejos, idéias, mandamentos morais e valores sociais dos promíscuos.

Na personalidade integrada, o "eu superior" com seus valores morais e estéticos controla o "ego" inferior e os impulsos animais. O mundo interior do indivíduo e seu comportamento manifesto são um todo ordenado, livre de grandes conflitos, motivações e ações contraditórias, livres de uma multidão de tensões e estresses. Essa pessoa goza de paz de espírito; ele segue uma linha clara de conduta determinada pelo seu sistema de valores e suas normas morais de "tu deverás" e "tu não deverás". Ele é afastado da maioria das influências desintegrativas internas e externas. Por mais dolorosas que sejam as tensões da vida, ele as sustenta com coragem. Tentativas de ações que contradizem seu código são rejeitadas sem hesistação, enquanto os apelos às ações que estão de acordo com seu "santo dos santos" são alegremente aceitas e, em grande medida, seguidas.

Em contraste, o mundo interior e as ações do libertino são um caos. A luxúria domina seus pensamentos e sentimentos, e controla seu comportamento claramente. Como seu organismo é um estado de desequilíbrio biológico, ele não pode controlar seus processos em vista de seu próprio bem-estar, nem pode resistir às inúmeras forças externas que o bombardeiam incessantemente. Seu "eu" potencial e seu "ego racional" não exercem efetivamente sua função de dirigir o organismo, sua personalidade é subdesenvolvida, seu ego é transpassado por inúmeras tensões e conflitos: de seus impulsos biológicos, uns contra os outros, especialmente o preponderante impulso sexual contra outros impulsos; dos fragmentos de valores e motivações entre si e com os impulsos biológicos; de seu "eu" com seu "ego". Ele é atormentado por sentimentos de culpa e remorso. Suas emoções e paixões conflitantes são continuamente excitadas. Ele é uma casa dividida contra si mesmo, cujas várias partes estão em guerra incessante contra si. Em tal condição, não consegue-se alcançar uma verdadeira paz de espírito, e seu organismo - com seu mau funcionamento e sua personalidade estilhaçada - fazem dele uma presa fácil para as neuroses e as psicoses funcionais.

O ambiente e o modo de vida dos glutões sexuais estão saturados de tensões intensas, emoções acaloradas e conflitos mortais. Sua busca do prazer exige constantes explosões de luxúria, ciúme, ansiedade, inveja, medo, dúvida, insegurança, ódio. A busca por novas excitações é inseparável dessas paixões, que surgem de vez em quando entre parceiros sexuais e quase sempre entre o libertino e as pessoas e grupos cujos interesses vitais são violados por suas transgressões.

O menor evento adverso no ambiente dos glutões sexuais pode precipitar uma série de mudanças de personalidade desintegrantes. A decepção, a suspeita, o fracasso, a frustração, assim como a vulgaridade, a feiura e a doença de seu ambiente podem precipitar neuroses e até mesmo psicoses.

Mesmo uma pessoa de corpo sadio, forte nervos e personalidade integrada precisaria mobilizar toda sua capacidade para suportar com sucesso tais grandes pressões. A condição física, emocional e espiritual enfraquecida do glutão sexual costuma torná-lo incapaz de resistir a eles, e ele eventualmente despedaça sob seu peso. Muitas vezes termina por se tornar um psiconeurótico ou um suicida.

Essa etiologia dos transtornos mentais funcionais contradiz fortemente a fantástica teoria freudiana que ensina que a repressão de impulsos sexuais incestuosos ou ilícitos é a principal fonte da psiconeurose. A abordagem psicanalítica, que aconselha implícita ou explicitamente a plena satisfação de todos os impulsos para a manutenção da saúde mental, é essencialmente não-científica e também perigosa moralmente e socialmente. Sua aplicação prática leva não a uma diminuição, mas a uma multiplicação de transtornos mentais. Só se pode lamentar que tais idéias tenham ganhado prestígio nos círculos científicos e sejam agora aceitas por uma legião de psiquiatras, psicólogos, educadores e "divulgadores", e até mesmo por alguns 'ministros' de Deus, embora nenhuma prova adequada de sua validade tenha sido apresentada.

Entre as evidências substanciais que sustentam a tese de que a indulgência sexual causa transtornos mentais e que desmente a teoria freudiana, deve-se notar o desenvolvimento paralelo da liberdade sexual e das neuroses.

Se a abordagem freudiana é correta, então um aumento da liberdade sexual entre os membros de uma sociedade deve ser seguido por uma diminuição de transtornos mentais funcionais. Por outro lado, se a etiologia que esboçamos é correta, podemos esperar um crescimento paralelo de psiconeuroses acompanhando o relaxamento das limitações do comportamento sexual. Os fatos relevantes parecem apoiar esta última proposição.

Para começar, durante as últimas décadas, tanto na América como em muitos países europeus, o movimento em direção à anarquia sexual foi acompanhado por um aumento constante de distúrbios mentais. E essa tendência se desenvolveu apesar de um exército expandido de psicanalistas e psiquiatras.
Nos Estados Unidos, nossa população dobrou desde 1880. Durante o mesmo período, o número de pacientes em hospitais mentais aumentou em doze vezes. Em 1880 tínhamos 63,7 doentes mentais em nossos hospitais por 100.000 habitantes; agora temos 366.7 por 100.000. Aproximadamente 20.000 admissões para instituições mentais são agora feitas anualmente. Atualmente, existem cerca de 630.000 pacientes em hospitais mentais, contabilizando cerca de 47% de todos os pacientes nos Estados Unidos. Nem esses números contam toda a história. Atualmente, neste país, as psiconeuroses têm aumentado de tal forma que, de acordo com várias estimativas, entre 25 e 50 por cento da nossa população adulta é considerada mentalmente doente em algum grau.

Não tão surpreendente, mas essencialmente semelhante, tem sido a tendência em alguns países europeus caracterizados por uma crescente liberdade sexual.

Naturalmente, esta situação pode, em parte, ser explicada por um diagnóstico mais adequado e preciso da doença mental; por mais hospitais; e por fatos semelhantes. Concedendo, no entanto, o significado dessas causas, elas não anulam a existência desse aumento assustador.

Não se pode e não se deve argumentar que a liberdade sexual é a única causa de doença mental dos nossos tempos. Como mostraremos mais tarde, há toda uma constelação de fatores que contribuem para a situação. Por outro lado, certamente não se pode argumentar que o aumento da liberdade sexual e as teorias e práticas da psicanálise reduziram a prevalência de transtornos mentais.

E uma vez que tanto o aumento da liberdade sexual quanto a proliferação de neuroses e psicoses ocorreram impressionantemente durante o mesmo período, pode-se considerar que existe uma relação causal entre elas. Essa é a primeira corroboração histórico-estatística de nossa visão.

Paralelos semelhantes entre a disseminação da licenciosidade e a multiplicação de transtornos mentais ocorreram em outras sociedades, especialmente durante os tempos revolucionários. Os períodos de declínio social e cultural na Grécia antiga e em Roma foram caracterizados pela anarquia sexual e transtornos mentais. O mesmo é verdadeiro dos séculos de declínio no fim do Reino Velho, do Reino Médio, do Império Novo, e no período de declínio do período helenístico do Egito antigo; na decadência da Babilônia e Assíria; e várias vezes na história da China. Por outro lado, dificilmente se conhece qualquer caso histórico no qual um aumento da liberdade sexual em larga escala tenha sido acompanhado por uma diminuição da desordem mental, ou em que o represar a torrente da anarquia sexual tenha sido seguido por um aumento de neuroses e psicoses.

Substanciando essa evidência está a taxa excepcionalmente alta de transtornos mentais entre as famílias reais marcadas pela promiscuidade e excesso em seu comportamento sexual. O mesmo se aplica aos artistas, músicos e escritores boêmios; seus herdeiros e herdeiras; e as estrelas do entretenimento.

Em resumo, as relações sexuais promíscuas e especialmente ilícitas tendem a minar a saúde mental de seus devotos e a busca excessiva de prazer sexual é um dos fatores importantes no desenvolvimento das psiconeuroses e das psicoses funcionais.



2. Efeitos sobre a integridade moral

Os efeitos da promiscuidade e das relações sexuais ilícitas sobre a integridade moral do indivíduo são bastante desastrosos. O aventureiro sexual tem que mentir para cada um de seus parceiros de cama sucessivos, negando ligações com os outros. O marido adúltero deve mentir para sua esposa, e a esposa desleal deve mentir para seu marido. Uma menina ou menino envolvido em um relacionamento ilícito deve mentir para os pais. E o glutão sexual é obrigado a mentir incessantemente para seus vizinhos, seus amigos, seus colegas de trabalho, seu empregador, a fim de esconder o estado real das coisas.

Uma lacuna ainda mais crucial na armadura da integridade é feita pela violação do transgressor dos votos matrimoniais e dos deveres para com as crianças, os pais e os amigos homens e mulheres, e para com os grupos políticos, religiosos e outros dos quais ele é membro. E, ao violar esses votos, o transgressor está quebrando um dos pilares de todo o tecido moral de sua personalidade. Este tecido é como uma teia de aranha: se você quebrar um de seus pontos focais, você põe em perigo e até arruína toda a teia. Os violadores são cada vez mais pressionados a tornar-se niilistas enciclopédicos, desmoralizados destroços humanos, e vez ou outra criminosos endurecidos.

No entanto, os efeitos desmoralizantes do libertinismo sobre seus devotos são tão conhecidos e tão amplamente aparentes que não precisamos aqui entrar em uma discussão detalhada deles.

3. Efeitos sobre a criatividade

Muitas vezes se ouve que as aventuras sexuais são necessárias e benéficas para a inspiração e conquista dos poetas, músicos, artistas, atores, inventores, construtores de grandes impérios políticos e econômicos, estudiosos criativos, cientistas e filósofos, mesmo para líderes morais e religiosos. Para reforçar esse argumento, geralmente se faz menção ao comportamento de certa forma libertino de Cellini, Boccaccio, Ovídio, Horácio, Villon, Mozart, Schubert e alguns outros.

Até que ponto esta teoria é válida? Em primeiro lugar, ninguém ainda provou que esses ou outros gênios se tornaram criadores por causa de suas aventuras sexuais. Ninguém demonstrou que essas aventuras foram mesmo instrumentais no desenvolvimento do potencial criativo. Pelo contrário, alguns desses gênios morreram prematuramente ou foram gravemente prejudicados pelos efeitos de sua heterodoxia sexual. A morte precoce de Schubert foi em grande parte devido a doença venérea; o banimento de Ovídio foi em parte causado por suas ligações; a morte prematura pelo duelo de dois dos maiores poetas da Rússia, Pushkin, e Lermontov, foi o resultado das atividades de outros libertinos, de sua própria promiscuidade e da infidelidade da esposa de Pushkin; o colapso nervoso do supostamente homossexual Tchaikovsky seguiu seu casamento precipitado e tolo; o fim da prematura da criatividade literária de Oscar Wilde foi causada por sua homossexualidade; as ligações ilícitas de Mozart, Chopin, Pergolesi e muitos outros tiveram influências obviamente depressivas em suas vidas artísticas; estes e centenas de casos semelhantes demonstram claramente os efeitos nocivos da promiscuidade sobre a criatividade dos músicos, artistas e escritores.

Em segundo lugar, as aventuras sexuais dos boêmios foram exageradas. Não devemos esquecer que muitos desses homens tiveram suas ligações em um período inicial de suas vidas, e que seus casos dificilmente excederam algumas relações pré-maritais. De qualquer ponto de vista, tais ligações têm pouco em comum com a devassidão. Na verdade, permanece pouco mais do que mito sobre a sexualidade excessiva dos boêmios, e certamente isso dificilmente pode ser considerado como tendo facilitado sua criatividade.

Em terceiro lugar, esta teoria popular é repudiada decisivamente pelo fato de que uma esmagadora maioria dos gênios criativos têm sido perfeitamente normais em suas atividades sexuais ou até mesmo foram ascéticos ou semi-ascéticos. Pythagoras, Socrates, Plato, Archytas, Aristotle, Euclides, Plotinus, Archimedes, Hesíodo, Esquilo, Sófocles, Pheidias, Varro, Copenicus, Newton, Alberto Magnus, Santo Tomás de Aquino, Palestrina, Victoria, JS Bach, Dante, Beethoven, Kant - estes e uma vasta gama de criadores na cultura ocidental tiveram sua vida sexual normal do ponto de vista dos padrões prevalecentes da sua sociedade e período, ou eram mais continentes que seus contemporâneos.

Quanto aos criadores religiosos e grandes líderes morais, eles foram ou ascéticos, como a maioria dos monásticos, ou tornaram-se continentes ou semi-continentes após o início de sua criatividade religiosa e ética, como Buda, Al Ghazzali e Ghandhi. Não é por acaso que a continência seja vista como uma condição necessária para uma liderança fecunda pela maioria das constituições monásticas do Oriente e do Ocidente, pelas poderosas correntes do hinduísmo e do budismo, pelo jainismo e pelo sufismo, pelo cristianismo católico romano, por muitos mestres espirituais (spiritualts pater, guru, sheikh) começando com o antigo guru e terminando com Gandhi, Sri Aurobindo e outros líderes dos últimos tempos. A maioria deles requerem castidade, não com a finalidade de torturar o corpo ou assegurar a salvação para a alma, mas como uma condição necessária para a realização da mais alta espiritualidade.

Não menos decisivo é o equívoco repudiado pelo fato de que libertinos grosseiros raramente, se alguma vez, se tornaram eminentes em qualquer campo da atividade criativa. O simples sexo não é nem uma condição suficiente nem uma condição vantajosa para escrever um poema, compor uma peça de música, pintar um quadro, ou alcançar qualquer outro objetivo significativo. As razões para isso são óbvias. Qualquer realização notável requer longo treinamento, trabalho persistente e concentração. A declaração de Thomas Edison de que suas invenções eram devidas a 10% de inspiração e 90% de transpiração cento é aplicável a qualquer trabalho criativo. O resultado é que pouco tempo e energia pode ser gasto em busca de emoções sexuais. Por outro lado, quando um indivíduo vive para saciar sua paixão, não tem nem o tempo, nem a energia, nem o poder de concentração necessário para o desenvolvimento de seu potencial criativo.

Estas observações são reforçadas pela antiga teoria do Yoga Tântrico do Kundalini Sakti, ou Mãe Divina, ou o "Poder da Serpente", como a força criativa ativa no universo. No ser humano, esse poder está adormecido na base da coluna vertebral, e seu acordar é necessário para despertar a consciência espiritual e a criatividade. Uma vez desperta, ascende ao longo do canal místico de Sushumna através dos centros sexuais, ou lótus, até atingir o lótus de mil pétalas no topo da cabeça. Nessa ascensão, transforma-se energia sexual em energia espiritual ou criativa.

Por razões um pouco diferentes, a continência completa também é fortemente aconselhada pela doutrina Bramacharya aos aspirantes de crescimento espiritual e moral. Nos últimos anos, esta doutrina tornou-se amplamente conhecida em todo o mundo através dos escritos e atividades de Gandhi e seus seguidores. E o ponto central desta antiga crença, isto é, a possibilidade de transformar a energia do impulso não-satisfeito sexual em uma forma de realização criativa, foi repetido outras vezes em diversas formas por muitos criadores religiosos, estudiosos e cientistas até as teorias recentes relacionadas à sublimação da energia libidinal não-gasta em energia criativa, como proposto por Herbert Spencer, Winiarsky, Oswald, Freud e outros.

A convergência, neste ponto, das teorias de Freud, Aurobindo e Gandhi, do Yoga hindu raja e tântrico e das regras de São Basílio o Grande, São Bento, São João Cassiano e outros padres monásticos cristãos, sugere que essas crenças contêm uma grande verdade. Se assim for, eles reforçam a conclusão de que quanto mais tempo, energia e esforço se dá à busca do prazer, menos resta para tarefas criativas; e vice versa. E Herbert Spencer, E. Westermark, J. Unwin e outros acrescentam a essas considerações várias razões "evolutivas" da incompatibilidade da atividade sexual excessiva e da criatividade social e cultural.
 



4. Efeitos sobre a felicidade


Finalmente, a excessiva preocupação sexual afeta negativamente a possibilidade de uma felicidade profunda e duradoura aos seus devotos. Uma vez que debilita o corpo, mina a vitalidade, destrói a saúde mental, desintegra a integridade moral e desencoraja a criatividade, obviamente não pode trazer a graça da equanimidade e felicidade duráveis. Exceto por momentos de intoxicação sexual de curta duração, a vida do promíscuo é desprovida de segurança e paz de espírito, e está cheia de suspeita, ódio, medo, ciúme, remorso, tédio e conflito doloroso sem-fim. Sendo estéril dos maiores e mais nobres valores, deteriora-se ao nível da vulgaridade primitiva. Mesmo o infinitamente rico e colorido milagre do amor é reduzido a mera cópula, que tende a tornar-se cada vez menos intensa e satisfeita.





Quanto mais esses promíscuos tentam alcançar o prazer, menos conseguem; a sensação que uma vez foi emocionante se torna monótona, rotineira e até mesmo dolorosa. Essa atenuação as vezes empurram o glutão sexual para uma busca por perversões, que agravam ainda mais a doença, o tormento e a miséria.

Não é de admirar, então, que a vida finalmente se transforma numa existência lamentável e que muitas vezes termina em suicídio.

Ao todo, os promíscuos pagam um preço exorbitante por seus momentos fugazes de prazeres. Eles pagam com sua saúde e vitalidade, com sua integridade mental e moral, com sua criatividade e felicidade. Tal é o Némesis dos glutões sexuais. E tais são as consequências do abuso e do mau uso de uma das maiores funções vitais do homo sapiens.



5. Sobre Família e os Próximos
 

Antes de nos voltarmos para os efeitos sociais e culturais da anarquia sexual, devemos considerar por um momento a influência desastrosa que o libertino tem sobre sua família e seus associados imediatos.

O transgressor perturba a vida ordenada da família. Um caso ilícito ou promíscuo envolve sempre mais indivíduos do que os parceiros sexuais. Cada libertino tem alguma família, marido ou mulher, pai e mãe, filhos, irmãos e outros parentes. Eles não podem deixar de estar profundamente preocupados com o comportamento desonroso do libertino. Eles não podem deixar de sentir uma profunda tristeza e vergonha pela infâmia trazida sobre a família. Eles também são envolvidos ​​por uma intensa ansiedade e medo pelo futuro do transgressor.

 Além disso, o ódio, o desprezo, o desejo de vingança e emoções semelhantes são despertados nos pais de um adolescente seduzido, no marido de uma esposa infiel, ou na esposa de um marido adúltero, ou em outros membros da família de uma vítima de luxúria de um outro. O libertino transforma-se, assim, no inimigo da família de sua companheira de cama.

No entanto, os efeitos não terminam aí. O libertino tem amigos e conhecidos, e muitas vezes seus interesses vitais são violados por sua promiscuidade. Desta forma, o glutão sexual se enreda em outra série de conflitos com um grupo ainda maior.

Um relacionamento ilícito envolve ainda várias agências religiosas, cívicas e outras que guardam a decência pública; as autoridades governamentais responsáveis ​​pela perseguição e punição desses delinquentes; e finalmente seu empregador. Com tal notoriedade, o transgressor encontra-se com dificuldades crescentes em cada fase de sua vida.

Desta forma, as atividades da libertinagem o levam à colisão mais aguda e crônica com um grande número de pessoas e grupos.


Ele também pode corromper muitas pessoas inocentes. Se ele é um pai, seu mau exemplo frequentemente desmoraliza seus filhos, e os coloca no caminho da promiscuidade.

Além disso, o promíscuo sofisticado pode espalhar a desmoralização em grande extensão, seja porque suas atividades são feitas para parecer glamoroso, seja porque ele ridiculariza valores e ideais prezados.

Nessas e outras formas, o veneno do transgressor irradia em toda a família, em seguida, na sociedade como um todo. As instituições sociais são desmoralizadas, os valores culturais degradados e a anarquia sexual se torna cada vez mais próxima.

retirado do livro The American Sex Revolution, escrito por Pitrim Sorokin
 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

A Mística Ortodoxa e a Mística Católico-Romana (Nikolai Berdyaev)

Há uma mística eclesiástica oficial do Oriente e do Ocidente, uma mística ortodoxa e uma mística católica. E a diferença entre os caminhos percorridos no mundo pelo Oriente ortodoxo e o Ocidente católico  podem ser explicados por aquilo que os distingue no plano da experiência mística. Há uma profunda diferença no vínculo original em relação a Deus e a Cristo. Para o Ocidente católico, Cristo é o objeto, está fora da alma humana na qualidade de inspiração e objeto de amor e exaltação. Assim, a experiência católica arrasta homem às alturas, em direção a Deus. A alma católica é gótica. O frio se une nela com a paixão. A imagem concreta, evangélica de Cristo, a Paixão de Cristo estão intimamente próxima da alma católica. A alma católica é apaixonada por Cristo; treme de amor por ele, sobre seu próprio corpo recebe os estigmas. Misticismo católico está impregnado de sensualidade, languidece e se desvanece, para ela não há outro caminho que aquele para onde leva a sua imaginação sensível. Corrente antropológica chega ali a sua tensão mais elevada. A alma católica grita: "Jesus, meu Jesus, meu próximo, meu amado." Ela se lança até ele, mas Deus não penetra nela: por que a alma católica tem frio, assim como também faz frio em seu templo. Deus não desce neste ou naquele. Em vez disso, a alma, apaixonadamente, voluptuosamente, sobe em sua busca, tende para seu objeto e para o alvo do seu amor. A mística católica é romântica e está cheia de languidez romântica. É uma mística faminta, que ignora a saciedade; não conhece o matrimônio, mas apenas a voluptuosidade. Agora, esta concepção de Deus como um objeto, como o fim de uma aspiração, é precisamente o que cria o dinamismo exterior do catolicismo. A experiência Católica criou uma cultura marcada fortemente por esse desejo ardente de Deus. A energia católica se espalhou por todos os caminhos da história, e isso se deu, porque, em vez de apreender Deus no coração humano, foi esse mesmo coração humano que se lançava até Deus e o buscava por todos os caminhos em uma dinâmica mundana. A experiência católica fez nascer da fome espiritual e da paixão religiosa insatisfeita, a beleza.
 
Para o oriente Ortodoxo, o Cristo é um sujeito, imanente na alma humana; a alma apreende a Cristo no interior dela mesma, na profundidade do coração. O desejo amoroso de Cristo e sua espera são, assim, impossíveis na mística ortodoxa. Não se tende a Deus, mas se dissolve nele. No templo Ortodoxo, como na alma, tudo é contrário do gótico: não há nele nem frio nem paixão. Na Ortodoxia, há uma temperatura morna, até fazer calor. A imagem evangélica e concreta de Cristo não aparece ali tão próxima. A Ortodoxia considera a sensualidade como um "sortilégio" e rejeita a imaginação como uma via quimérica. Nenhum Ortodoxo grita: "Jesus meu, meu próximo, meu bem amado". Mas no templo e na alma ortodoxa, o Cristo penetra e os esquenta. E não existe ali nenhuma paixão languidecente. A Ortodoxia não é romântica, mas realista e sóbria. A temperança é o caminho místico da Ortodoxia. A Ortodoxia está saciada, preenchida espiritualmente, e sua experiência é um matrimônio e não uma relação de amor. Entendido Deus como sujeito, concebido na profundidade do coração humano, a espiritualidade absolutamente interior desse vínculo não cria um dinamismo exterior, está voltado exclusivamente à uma união interior. Esta experiência da mística Ortodoxa não é, portanto, acolhedora para a cultura, não cria beleza. Ela pareceria estar muda para o mundo exterior. A energia Ortodoxa não se espalhará, pois, pelos caminhos históricos, não criará o externo. Esta diferença dos caminhos tomados pela experiência religiosa contém um profundo segredo, e ambos caminhos são autenticamente cristãos.


sexta-feira, 17 de março de 2017

A lenda do Grande Inquisidor e o Grande Cisma em Dostoiévski


A imagem de Cristo de Dostoiévski é expressa vividamente na narrativa "O Grande Inquisidor", presente em sua última e mais religiosa novela, Os Irmãos Karamazov (1879-1880). O conto, comumente referido como a "Lenda do Grande Inquisidor" é, na verdade, apresentado em nível de meta-ficção.

O autor da lenda é Ivan Karamazov, que relata seu poema não escrito, sobre um personagem imaginário que pode ter imaginado seu encontro com Cristo, para seu irmão Alyosha (Jones 1976: 191). A lenda se passa em Sevilha durante o século XVI no auge da Inquisição espanhola. Em meio ao sofrimento e à tortura dos hereges queimados na fogueira, Cristo aparece "na forma humana em que andou entre a humanidade por três anos há quinze séculos" (PSS 14: 226). Seu retorno à Terra não é como aquele que foi profetizado na Segunda Vinda, mas sim para consolar e re-inspirar momentaneamente "seus filhos" que imediatamente o reconhecem. Cristo move-se entre o povo, abençoando-os e realizando milagres, irradiando amor e compaixão. O Grande Inquisidor, um homem velho, testemunha esses milagres e ordena sua prisão. À noite, ele visita Cristo em sua cela e realiza um longo monólogo no qual confronta Cristo com o fardo que Ele pôs sobre a humanidade. Ele afirma que Cristo não tem o direito de aparecer na Terra e "nos impedir" porque, quando Ele deixou a Terra, Ele concedeu aos predecessores do Inquisidor o direito de ensinar e agir de acordo com Suas palavras em sua própria maneira (PSS 14: 229). Cristo permanece em silêncio durante todo o monólogo: nenhuma vez tenta se opor aos argumentos do Inquisidor ou desenvolver suas próprias idéias.

O argumento do Inquisidor é inteiramente centrado no problema da liberdade. Ele reprova a Cristo por ensinar à humanidade a promessa de liberdade. No entanto, de acordo com o Inquisidor, a humanidade é muito fraca para lidar com essa liberdade, e é por isso que a Igreja assumiu o controle. O Inquisidor acredita que a felicidade na Terra só pode ser alcançada quando a humanidade tiver entregue sua liberdade. Ele fundamenta sua argumentação dentro da estrutura bíblica da tentação de Cristo no deserto. Ele afirma que as três questões colocadas nas tentações são as mais fundamentais em toda história humana porque elas contêm a resposta para aquilo que a humanidade realmente precisa. Com o conhecimento de quinze séculos de história humana atrás dele, o Inquisidor coloca essas três questões novamente para Cristo e visa expor as consequências desastrosas das respostas de Cristo para a humanidade. O inquisidor reformula a primeira tentação da seguinte maneira:

Você quer ir ao mundo, e vai com suas mãos vazias, com alguma promessa de liberdade em que eles, em sua simplicidade e mal-estar nato, não podem sequer compreender, eles temem e receiam, pois nada nunca foi mais insuportável para o ser humano e a sociedade do que a liberdade. Você vê as pedras neste deserto estéril e ressecado? Transformai-as em pão, e a humanidade correrá atrás de ti, como um rebanho de ovelhas, gratos e obedientes, embora sempre tremendo, temendo que retires a tua mão e não lhes dês mais o teu pão. Mas você não quis privar a humanidade da liberdade e rejeitou a oferta, pois pensou, que liberdade é essa, se a obediência é comprada com pão? Você respondeu que o homem não vive apenas de pão (Pv 14,23).



Nessa tentação, o Inquisidor revela sua verdade, que os humanos não podem lidar com a liberdade que Cristo queria que eles tivessem, aquela apresentada a eles. Ele acredita que a verdadeira preocupação da humanidade não é a liberdade, mas a satisfação das necessidades mais primitivas e naturais, como a fome e o frio. Em sua cosmovisão, o ser humano é um ser fraco e quase animalesco ("a raça fraca do homem, sempre pecaminosa e ignóbil) cujo comportamento é totalmente determinado por desejos materiais (PSS 14: 231). O "pão celestial" (khleb nebesnyi) ou a liberdade que Cristo prometeu à humanidade não pode se igualar ao "pão terreno" (khleb zemnoi) ou ao bem-estar material que o Grande Inquisidor e seus companheiros líderes religiosos fornecem à humanidade (PSS 14: 231). Uma vez que o ser humano é por natureza guiado por motivos puramente egoístas, ele nunca poderá compartilhar seu pão com os outros; é por isso que, de acordo com o Inquisidor, não é possível dar a humanidade a promessa da liberdade e do pão, da singularidade espiritual e do bem estar material. Apenas alguns indivíduos excepcionalmente fortes são capazes de disciplinar suas necessidades naturais e podem ser virtuosos e altruístas enquanto sofrem de dor e fome. No entanto, a maioria dos seres humanos, "numerosos como a areia do mar", são determinados por sua condição física e acabariam por matar para satisfazer sua fome. Assim, o Inquisidor crê que, para bem do bem-estar universal da humanidade, é imperativo reconhecer e satisfazer primeiro os seus desejos materiais: "a humanidade proclamará [...] que não há crime e portanto nenhum pecado, que há apenas famintos. Alimenta-os, e então exija virtude deles" (PSS 14: 230). A humanidade prefere um estado de escravidão em vez de um destino de fome. Aparentemente por amor e compaixão pela humanidade sofredora e fingindo agir em nome de Cristo, o Grande Inquisidor e os outros oficiais da Igreja assumiram a tarefa de libertar a humanidade desta terrível e insuportável liberdade e de trazer o bem-estar material para Terra. Para o inquisidor, o erro de Cristo é que ele desconsidera os desejos físicos e materiais do homem, concentrando-se principalmente nas necessidades espirituais do homem. O Inquisidor reconhece, no entanto, que o pão terrestre sozinho não é suficiente para o bem-estar humano nem para a perfeita ordem humana que ele aspira alcançar. Nascido "rebelde" (buntovshchik), o humano não pode aceitar que ele é um mero produto das leis naturais e assim se percebe de uma forma mais idealizada (PSS 14: 229). Como o Inquisidor afirma, "o mistério da existência humana não é apenas viver, mas saber por que se vive" (PSS 14: 232). Os seres humanos se esforçam para transcender as limitações de sua condição natural e adicionar uma dimensão moral à sua existência. Apesar de sua natureza predeterminada, eles não estão apenas satisfeitos com o pão terreno, mas também estão inclinados a compor categorias morais e observar o mundo e a si mesmos dentro desse quadro. Fazem de sua consciência, que é a fonte das distinções morais, o fundamento primário de seu ser. O Grande Inquisidor não ignora a afirmação humana da consciência pessoal. Ele sustenta que, para tomar posse da liberdade humana, deve-se chegar a uma solução para essa inquieta consciência, solução que é complementar à satisfação imediata das necessidades físicas do ser humano. O mistério da consciência humana é que "não há nada mais sedutor para o ser humano do que sua liberdade de consciência (svoboda sovesti)", mas ao mesmo tempo "não há nada mais agonizante também" (PSS 14: 232). Quando se está plenamente consciente deste paradoxo, pode-se aliviar os seres humanos desta liberdade atormentadora, como o percebe o Grande Inquisidor. Ele culpa Cristo por afirmar esta liberdade de consciência ao invés de tomar posse da liberdade do homem, iluminando assim a sua existência:

Digo-vos que o humano não tem preocupação mais angustiante de que encontrar alguém para que possa mais depressa entregar esse dom da liberdade, com o qual a infeliz criatura nasce. Mas só aquele que pode apaziguar a sua consciência, pode tomar posse de sua liberdade [...] em vez de tirar a liberdade dos humanos, você aumentou-a ainda mais [...] você sobrecarregou o reino da alma humana para sempre com os sofrimentos da liberdade (PSS 14: 232).

Cristo dotou a humanidade com a completa "livre escolha no conhecimento do bem e do mal" (Svobodnogo vybora v poznanie dabra i zla) (PSS 14: 232). Contudo, de acordo com o Inquisidor, a maioria da humanidade carece da força espiritual e moral para determinar para si mesmos o valor moral do bem e do mal. O Inquisidor revela a Cristo as ramificações de sua mensagem de liberdade moral para a humanidade: a perpétua busca do bem e do mal do homem só resultou em tormento mental e infelicidade. O humano é demasiado fraco para determinar seus próprios padrões morais, e é por isso que, como o Inquisidor sustenta, o humano anseia por ídolos, por autoridades espirituais externas, por um exemplo ético para modelar seu comportamento. Atormentado pela carga da autonomia moral e da consciência pessoal, a humanidade se encontra ansiosa para entregar sua liberdade existencial para uma autoridade absoluta.

O Grande Inquisidor apresenta a Cristo a segunda tentação, onde Ele teve a oportunidade de provar sua divindade por meio de um milagre e, se o fizesse, poderia ter se tornado o ídolo pelo qual a humanidade anseia. A tentação revela os meios mais eficazes para atrair a humanidade a entregar a sua liberdade.

Há três forças, as únicas três forças na terra, que são capazes de conquistar e manter cativo para sempre a consciência desses rebeldes fracos por sua própria felicidade, essas forças são: o milagre, o mistério e a autoridade (chudo, tajna i avtoritet). Você rejeitou os três e você mesmo estabeleceu o exemplo de como fazer. Quando o espírito terrível e sábio te colocou no pináculo do templo e te disse: "Se és filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem" (PSS 14: 232f.).

Cristo ensinou ao homem para "decidir com um coração livre por si mesmo, o que é bom e o que é mau" (svobodnym serdtsem [...] reshat 'vpred' sam, chto dobro i chto zlo) (PSS 14: 232). Na visão do Inquisidor, em contraste, o ser humano deve ser ensinado que a questão do bem e do mal é um mistério que deve ser aceito e acreditado, ao invés de uma escolha livre a ser feita. Não é "a decisão livre de seus corações, nem o amor que é importante para eles, mas o mistério que eles devem cegamente obedecer, mesmo se for contra sua consciência" (PSS 14: 234). Porque, como diz o Inquisidor, o conhecimento do bem e do mal é inacessível para a humanidade e, portanto, os seres humanos não podem deixar de obedecer a uma autoridade externa e absoluta, que é sobretudo confirmada por milagres: o humano "não busca tanto Deus, mas um milagre" (PSS 14: 233). É a opinião do Inquisidor que o ser humano está disposto a ceder sua liberdade para quem lhe dá o pão e tem a chave para os três poderes que podem aliviar o anseio moral do ser humano, isto é, "o milagre, o mistério e a autoridade".
 

Com relação à terceira tentação, o Inquisidor defende que a felicidade do homem ainda não é garantida pelo bem-estar material e pela autoridade moral. O terceiro tormento da humanidade é a "necessidade de unidade universal", em unir-se em um "formigueiro indisputável, comum e harmonioso" (PSS 14: 235). Os seres humanos precisam se curvar a um ídolo, e eles anseiam fazê-lo junto com outros. O Inquisidor defende que a unidade que a humanidade procura é universal porque a coexistência de diferentes ídolos mina a autoridade de cada ídolo individual e resulta em desordem moral. Ele alega que esta unidade universal não só deve ser realizada na esfera espiritual, proporcionando uma autoridade espiritual, mas ainda mais importante, na realização de uma ordem secular. E aqui está o significado da terceira tentação. O diabo ofereceu a Cristo todos os reinos do mundo em troca da adoração de Cristo a ele. E, recordando esta última tentação a Cristo, o inquisidor revela quem ele realmente adora e em quem está sua fé:

Não estamos com você, mas com ele, esse é o nosso segredo! Por muito tempo não estamos mais com você, mas com ele, já há oito séculos. Exatamente oito séculos atrás, nós tomamos dele aquilo que você rejeitou com indignação, aquele último presente que ele lhe ofereceu, mostrando todos os reinos do mundo. Tomamos dele a espada de Roma e de César (mech kesaria) e proclamamo-nos os reis da terra (PSS 14: 234).

Cristo ensinou à humanidade que Seu reino não é deste mundo (João 18: 36-39). O Inquisidor, ao contrário, aspira construir um paraíso terrestre, um estado universal no qual a felicidade material e espiritual da humanidade é assegurada. A referência a "oito séculos atrás" não é arbitrária. A lenda do "Grande Inquisidor" se passa no século XVI, mas oito séculos antes, houve dois eventos no mundo cristão que revelaram as diferenças ideológicas entre a Igreja Oriental e a Igreja Ocidental. Em 756, o rei franco, Pepino o Breve, deu ao Papa Estêvão III a soberania sobre Ravenna, concedendo-lhe assim o poder secular (Terras 1981: 234). Para Dostoiévski, esta apreensão do poder temporal pela Igreja Católica foi uma traição da recusa de Cristo de um reino terrestre, como foi oferecido a Ele pelo diabo. Embora Cristo tivesse explicitado que Seu Reino não pertence a este mundo, a Igreja Romana havia aceito em Seu nome a secularidade do império romano e tinha tomado a espada de César como um instrumento de compulsão para levar a mensagem de Cristo aos povos bárbaros. Ao se envolver em assuntos terrenos, a Igreja Ocidental tinha sido infiel à promessa de Cristo de um paraíso celestial.
 
No entanto, foi outro evento, no campo da teologia, que seria crucial para a divisão final entre a Igreja Ocidental e Oriental. Em 796, um sínodo local de bispos latinos acrescentou a cláusula Filioque ao credo Niceno, que se tornaria prática comum na Igreja Ocidental. A cláusula proclama que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (qui ex Patre Filioque procedit). Esta cláusula foi aceita pelos teólogos ocidentais, mas rejeitada pela Igreja Oriental, resultando assim em uma disputa teológica entre o Ocidente e o Oriente, o que, por sua vez, revelou que ambos tinham uma concepção diferente da Divindade. O Trinitarianismo ocidental tomou a unidade de Deus como ponto de partida e considerou o Espírito como o elo de união entre Pai e Filho. Em tal teoria, Deus é uma entidade com três hipóstases. O Trinitarianismo oriental, em contrapartida, afastou-se do Pai, do Filho e do Espírito Santo como três entidades desarticuladas e procurou definir a relação entre elas de modo a assegurar sua unidade. Nessa teoria, o Pai é a fonte, o princípio e a causa dentro da Trindade. A Trindade é uma unidade se tanto o Filho como o Espírito emanam de uma causa, o Pai. Os teólogos orientais compararam a Trindade a uma balança de equilíbrio, na qual o Pai é o ponto de equilíbrio no centro, do qual dependem tanto o Filho quanto o Espírito Santo. Assim, eles condenaram o Filioque ocidental porque tornou  o Filho igual ao Pai (Pelikan 1977: 183ff.). Basicamente, para a Igreja Oriental, a cláusula Filioque traiu o princípio supremo cristão da transcendência e imanência simultânea de Deus, uma verdade que não pode ser compreendida pela razão humana e deve permanecer um mistério para a humanidade.

Para Dostoiévski, as sementes do cisma oficial entre a Igreja Ocidental e Oriental em 1054 foram semeadas três séculos antes, quando os Bispos latinos alteraram a verdade doutrinária sem o consentimento de toda a Igreja. É óbvio que o Grande Inquisidor está do lado da Igreja Católica Romana. Pois, oito séculos depois do Filioque, ele continua a típica inclinação da Igreja Latina para racionalizar o princípio incognoscível e ininteligível da verdade cristã: este é, na perspectiva oriental, o paradoxo da transcendência e imanência simultânea de Deus. Os teólogos ocidentais, buscando uma definição mais inteligível da unidade trinitária, subjugaram esse paradoxo, enfatizando a transcendência de Deus e excluindo Sua imanência. Para os crentes orientais, assim como para Dostoiévski, isso implica a exclusão de Deus do mundo.

Assumindo que Deus está ausente neste mundo, o Grande Inquisidor e os ex-líderes católicos tentaram organizar uma ordem humana baseada em uma autoridade terrena. Para esse fim, eles se aliaram com um poder secular e tomaram a "espada de César". Esta é mais uma alusão à história da Igreja Latina. No século VIII, o papado romano, sentindo-se ameaçado pelas invasões de tribos bárbaras vizinhas, entrou numa aliança com Carlos Magno que os ajudou a derrotar e cristianizar esses povos pagãos. Embora Carlos Magno não fosse um especialista em questões teológicas, ele apoiou o Filioque e desempenhou um papel crucial na aceitação dele no credo da Igreja Ocidental. Para selar a aliança, o Papa Leão III o coroou imperador do Sacro Império Romano em 800 (Ward 1986: 169). A Igreja Católica, assim, se integrou no estado terrenal e se conformou às instituições legais e cívicas do império romano. Sucumbindo à necessidade humana da unidade universal, a Igreja Católica Romana buscou essa unidade em uma ordem material e secular e preferiu a autoridade visível do imperador e do papa em vez do ideal invisível de Cristo. A Igreja Ocidental cedeu à terceira tentação e aceitou a oferta de todos os reinos deste mundo. E aqui reside o segredo do Grande Inquisidor: no Ocidente a Igreja não viveu pelo ensinamento de Cristo sobre a liberdade, mas renunciou à sua liberdade para aquele que tentou a Cristo no deserto, Satanás:

Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos a espada de César e, assim fazendo, nós Te abandonamos para segui-lo. (PSS 14:235).

Prosseguindo a sua convicção racional de que o homem só pode alcançar a felicidade num paraíso terreno, o Inquisidor chega até mesmo a rejeitar a imortalidade da alma e a idéia do Paraíso Celestial: "Tranquilos eles morrerão, pacificamente expirarão em seu nome e, além do túmulo, encontrarão apenas a morte". No entanto, pela paz de espírito da humanidade, "nós os atrairemos com uma recompensa celestial e terrena" (PSS 14: 236). O Inquisidor assim abandona uma das doutrinas mais essenciais do cristianismo, a doutrina da salvação e da ressurreição da humanidade no outro mundo. Ele reprova a Cristo por ter trazido à humanidade uma vaga promessa de um reino celestial ininteligível, deixando-os em condição de infelicidade e ignorância: ele tomou para si a tarefa de salvar a humanidade infeliz e proclama-se o novo salvador ("salvamos a todos" PSS 14: 236). Ele não coloca a salvação final da humanidade no paraíso celestial, mas busca uma ordem humana universal neste mundo que salvará a humanidade nesta vida. Isso mostra novamente que o Inquisidor se liga a Satanás e não a Cristo que proclama ressurreição no Reino Celestial.

Embora a ficção de Dostoiévski seja geralmente marcada por um discurso polifônico, a figura de Cristo neste texto específico não fala explicitamente. Ainda assim, ele representa a voz ideológica mais original no discurso fictício de Dostoiévski. A imagem do Cristo silencioso oferece a solução para todas as buscas ideológicas dos outros personagens fictícios ou, colocando nos termos de Bakhtin, "esta voz mais elevada deve coroar o mundo das vozes, organizá-lo e subjugá-lo" (Bakhtin 1984: 97). Como interpreto, Cristo permanece em silêncio porque a sua verdade é algo que não pode ser capturado na linguagem humana. O silêncio absoluto de Cristo em confronto com as fortes acusações do Grande Inquisidor afirma o típico dogma apofático ortodoxo da inefabilidade da "palavra" divina. Na tradição cristã ortodoxa, a verdade divina não pode ser comunicada, mas apenas pode ser manifestada pelas obras de Cristo. Ou, como observou Dostoiévski em seus cadernos dos Demônios, em relação a Cristo "não há sequer ensinamentos, apenas palavras ocasionais, ao passo que a coisa principal é a imagem de Cristo, da qual procede todo ensinamento" (PSS 11:19).


"Se você distorcer a fé de Cristo, combinando-a com os objetivos deste mundo, todo o significado do cristianismo é imediatamente perdido, a mente irá, sem dúvida, cair na descrença, e em vez do grande ideal de Cristo ali surgirá apenas uma nova torre de Babel. [...] Sob a aparência do amor social pela humanidade, ali surge um desprezo quase disfarçado por ela"     
Palavras de Dostoiévski em uma introdução a uma leitura pública de "O Grande Inquisidor"
                                                      

Retirado do livro "What the God-seekers Found in Nietzsche" por  Nel Grillaert

domingo, 12 de março de 2017

O Problema do Ser e da Existência (por N. Berdyaev)

Desde a antiguidade os filósofos buscaram o conhecimento do ser (ousia, essentia). A construção de uma ontologia tem sido a maior reivindicação da filosofia. E, ao mesmo tempo, a possibilidade de conseguir isso suscitava dúvidas entre os filósofos. Às vezes, parecia que o pensamento humano se encontrava, nesse aspecto, perseguindo um fantasma.

A transição do múltiplo para o Um, e do Um para o múltiplo era um tema fundamental na filosofia grega. De maneira diferente o mesmo tópico tem sido fundamental na filosofia indiana também. O pensamento indiano tem-se incomodado pela pergunta: como o ser se origina do não-ser? Em grande parte, centrou-se no problema do nada, do não-ser e da ilusão. Esteve ocupado com a descoberta do Absoluto e libertação do relativo, o que significava salvação. O pensamento indiano tentou colocar-se do outro lado do ser e do não-ser, e revelou uma dialética do ser e do não-ser. É isso que o tornou importante.

Os gregos procuravam apxn - o primordial. Eles meditaram sobre o imutável; preocupavam-se com o problema da relação do imutável com a mudança; desejavam explicar como o devir surge do ser. A filosofia buscava elevar-se acima do mundo enganoso dos sentidos e penetrar no Uno passando pelo mundo de pluralidade e mudança. Tinham dúvidas sobre a realidade do movimento. Se o homem obter o conhecimento do ser ele alcançará o ápice do conhecimento, e, às vezes, se pensava, que se alcançaria a salvação por ter realizado a união com a fonte primária. Contudo, ao mesmo tempo, Hegel diz que o conceito de ser é completamente fútil, ao passo que Lotze afirma que o ser é indefinível e só pode ser experimentado.

Heidegger, ao pretender construir uma nova ontologia, diz que o conceito de ser é muito obscuro. O ser puro é uma abstração e é numa abstração que os homens procuram se apoderar da realidade primária, a vida primária. O pensamento humano está empenhado na busca de seu próprio produto. É nisso que reside a tragédia da aprendizagem filosófica, a tragédia, isto é, de toda a filosofia abstrata. O problema que enfrentamos é o seguinte: não é o ser um produto da objetivação? Não transforma o assunto do conhecimento filosófico em objetos nos quais o mundo noumenal desaparece? Não estará o conceito de ser lidando com o ser enquanto conceito, o ser possui existência?

Parmênides é o fundador da tradição ontológica da filosofia, uma tradição altamente significativa e importante em relação à qual os esforços da razão atingiram o nível de gênio. Para Parmênides, o ser é um e imutável. Não há não-ser, existe apenas ser. Para Platão, que seguiu essa tradição ontológica, o verdadeiro ser é o reino das idéias que ele vê por trás do movimento e do mundo múltiplo dos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, Platão mantém a supremacia do bom e do benéfico sobre o ser, e daí é possível ir para outra tradição da filosofia. Em Platão, a unidade da perfeição é a idéia mais elevada e a idéia de ser é o próprio ser. Husserl, depois de passar por uma fase de idealismo e afirmação da primazia da mente, veio a continuar a tradição do platonismo na contemplação do ser ideal, Wesenheiten.

Nos processos de pensamento a mente humana procurou elevar-se acima deste mundo dos sentidos que se apresenta a nós, e no qual tudo é instável, acima do mundo do devir, ao invés do ser. Mas por isso mesmo, a busca pelo ser tornou-se dependente do pensar, e a marca de pensamento encontra-se sobre ela. O ser tornou-se objeto do pensamento e, assim, veio a denotar objetificação. O que a razão encontra é o seu próprio produto. A realidade então depende do fato de que ela se torna matéria de conhecimento, em outras palavras, um objeto. Mas, na verdade, o contrário é verdadeiro, a realidade não está na frente do sujeito cognoscente, mas "atrás dele", em sua existencialidade.

O caráter errôneo do antigo realismo é particularmente claro no caso do tomismo, a filosofia do comum ou do senso comum. Considera-se os produtos do pensamento, a hipostasiação do pensamento, como realidades objetivas. Assim, São Tomás de Aquino supõe que o intelecto - e somente intelecto - entra em contato com o ser. O ser é recebido desde fora. Isto é tornar a consciência normal média - que também é considerada como a natureza humana imutável - absoluta. Esse tipo de ontologia é um claro exemplo de metafísica naturalista, e não reconhece as antinomias que a razão gera. A natureza da apreensão intelectual do ser é estabelecida pelo fato de que o ser já era de antemão o produto da intelectualização. Na visão tomista, o ser vem antes do pensamento; mas esse ser já era fabricado pelo pensamento. O ser é secundário e não primário.

Na filosofia medieval, a questão da relação entre essentia e existentia desempenhou um papel importante. O ser é essentia. Mas a questão permanece: a essência possui uma existentia própria? Na filosofia atual, por exemplo em Heidegger e Jaspers, essa questão assume uma nova forma: a relação entre Sein e Dasein. Aristóteles e os escolásticos admitiram uma classificação numa lógica do mesmo tipo que na zoologia e em tal classificação o conceito de ser tomou seu lugar como o mais amplo e o mais elevado. Brunschvicg assinala com razão que foi Descartes que rompeu com esse naturalismo na lógica e na metafísica. Mas a ontologia nunca foi capaz de livrar-se inteiramente do espírito naturalista.

Hegel introduziu um novo elemento no conceito de ser. Ele introduziu a idéia do não-ser, o nada, sem o qual não há nenhum vir-a-ser, não há emergência do que é novo. O ser em si é vazio e o equivalente do não-ser. O fato inicial é ser-não-ser, a unidade, ser e nada. O ser é o nada, o ser indeterminado e incondicional. Dasein em Hegel é a união do ser e do nada, do devir, do ser determinado. A verdade está na transição do ser para o nada, e do nada para o ser. Hegel quer colocar a vida num ser entorpecido e ossificado. Ele procura passar do conceito ao ser concreto. Isto é alcançado por meio do reconhecimento da natureza ontológica do próprio conceito, é o ser que é preenchido com vida interior. "Identidade", diz Hegel, "é uma definição do ser simples, imediato e morto, ao passo que a contradição é a raiz de todo movimento e vitalidade. É somente na medida em que o nada tem dentro de si sua contradição que ele tem movimento e atinge um estado de vigília e atividade." A dialética é a vida real. Mas Hegel não atinge a concretude real. Ele permanece sob o domínio da objetividade. Vladimir Soloviev, que esteve muito sob a influência de Hegel, faz uma distinção muito valiosa e importante entre ser e o existente. O ser é o predicado do existente, que é o sujeito. Dizemos: "esta criatura é" e "essa sensação é". Uma hipostasiação do predicado ocorre. Diversos tipos de ser são formados através da abstração e hipostasiação de atributos e qualidades, assim se construíram ontologias que formavam uma doutrina do ser abstrato e não do existente concreto. Mas o verdadeiro sujeito da filosofia deveria ser, não o ser em geral, mas aquilo a que e a quem o ser pertence, isto é, o existente, o que existe. Uma filosofia concreta é uma filosofia existencial, e isso Soloviev não atingiu, ele permaneceu um metafísico abstrato. A doutrina do tudo-em-um é o monismo ontológico.


Não é verdadeiro dizer que o ser é: somente o existente é, somente o que existe. O que o ser diz de uma coisa é que algo é, não fala sobre o que é. O sujeito da existência confere ser. O conceito de ser é logicamente e gramaticalmente ambíguo, dois significados estão confusos nele. Ser significa que algo é, e também significa aquilo que é. Este segundo significado de "ser" deveria ter sido descartado. O ser aparece como um sujeito e um predicado, no sentido gramatical dessas palavras. Na verdade, o ser é apenas um predicado. Ser é o comum, o universal. Mas o comum não tem existência e o universal está somente dentro daquilo que existe, no sujeito da existência, não no objeto. O mundo é múltiplo, tudo nele é individual e único. O universalmente comum não é senão a realização da qualidade de unidade e de comunhão nessa pluralidade de individualidades. Há algum grau de verdade no que Rickert diz, que ser é um julgamento de valor, que o real é o sujeito do julgamento. A partir disso, conclui-se erroneamente que a verdade é obrigação, em vez de ser; o transcendente é apenas Geltung. Geltung refere-se ao valor, não à realidade.

Quando se afirma a primazia da obrigação sobre o ser, isto pode parecer o primado platônico do bem sobre o ser. Mas Soloviev diz que aquilo obriga o ser neste mundo é o eternamente existente em outra esfera. Surge uma questão fundamental: existe o sentido, o valor ideal, e, em caso afirmativo, em que sentido existe? Existe um sujeito de sentido, valor e idéia? Minha resposta a esta pergunta é que existe, existe como espírito. O espírito, além disso, não é o ser abstrato, é o que existe concretamente. O Espírito é uma realidade de outra ordem comparada a realidade da natureza "objetiva" ou da "objetividade" que nasce da razão. A ontologia deve ser substituída pela pneumatologia. A filosofia existencial se afasta da tradição ontologica, na qual vê uma objetificação inconsciente. Quando Leibniz vê na mônada uma substância simples que entra em uma organização complexa, seu ensinamento trata da harmonia das mônadas no mundo, e o que mais lhe interessa é a questão da simplicidade e da complexidade: ele ainda está no poder da metafísica naturalista e numa ontologia objetivada.

É essencial compreender as inter-relações de conceitos como verdade, ser e realidade. Desses termos, realidade é o menos aberto à dúvida e o mais independente das escolas de terminologia filosófica, no sentido que adquiriu. Mas, originalmente, estava ligado a res, a uma coisa, e a marca de um mundo objetificado foi gravada no termo. A verdade, mais uma vez, não é simplesmente aquilo que existe, é uma qualidade e valor alcançado, a verdade é espiritual. Aquilo que é, não deve ser venerado simplesmente porque é. O erro do ontologismo conduz à uma atitude idólatra em relação ao ser. É a Verdade que deve ser venerada, não o ser. A Verdade, além disso, existe concretamente, não no mundo, mas no Espírito. O milagre do cristianismo consiste no fato de que nele, a encarnação da Verdade, do Logos, do Sentido, apareceu, a encarnação do que é único, singular e irrepetível; e aquela encarnação não era uma objetificação, mas uma ruptura abrupta contra a objetificação. Deve-se reiterar constantemente que o espírito nunca é um objeto e que não existe tal coisa como espírito objetivo. O ser é apenas um entre os filhos do espírito. Mas somente o trans-subjetivo é aquilo que existe, o existente. Enquanto o ser é meramente um produto da existência hipostatizada.

O ontologismo puro submete o valor ao ser. Colocando de outra forma, obriga-se a considerar o ser como uma única escala e critério de valor e de verdade, do bem e do belo. Ser, a natureza do ser, de fato é bondade, verdade e beleza. O único significado da bondade, verdade e beleza está nisso, que eles são - ser. E o reverso da questão é semelhante, o único mal, falsidade e feiura, é o não-ser, a negação do ser. O ontologismo tem de reconhecer o ser como Deus, deificar o ser e definir Deus como ser. E isso é característico da doutrina catafática de Deus, e distingue-a, em princípio, da doutrina apofática que considera Deus não como ser, mas como supra-ser.

Schelling diz que Deus não é ser, mas vida. 'Vida' é uma palavra melhor do que 'ser'. Mas a filosofia ontológica tem uma semelhança formal com a filosofia da vida, à qual a 'vida' é o único padrão da verdade, bondade e da beleza: a vida em seu máximo é seu valor supremo. O maior bem, o maior valor é definido como o máximo do ser ou o máximo da vida. E não há contestação do fato de que deve-se ser, deve-se viver, antes que a questão do valor e do bem possa ser levantada. Não há nada mais triste e estéril do que aquilo que os gregos expressaram pela frase OVK ov, que é o autêntico nada. As palavras Sv escondem uma potencialidade, e assim, portanto, é apenas metade do ser ou ser que não está realizado.

A vida é mais concreta e mais próxima de nós do que o ser. Mas a inadequação da filosofia da vida consiste nisso: ela tem sempre um sabor biológico. Nietzsche, Bergson e Klages ilustram esse ponto. O ser, de fato, é abstrato e não tem vida interior. O ser pode possuir as qualidades mais elevadas, mas também pode não possuí-las, pode ser também o mais inferior. E, portanto, o ser não pode ser um padrão de qualidade e valor. A situação é sempre salva quando a frase 'real e verdadeiro' é adicionada. Mas então 'realidade e verdade' se tornam o padrão e valor mais elevado. É a realização do ser 'real e verdadeiro' que é o objetivo, não a afirmação do ser em seu máximo. Isso só salienta a verdade que o ontologismo é a hipostatização de predicados e qualidades. O ser adquire um sentido axiológico. O valor, a bondade, a verdade e a beleza são uma visão da qualidade na existência e elevam-se acima do ser.

Mas há algo ainda mais importante na caracterização do ontologismo na filosofia. O reconhecimento do ser como o bem supremo e valor significa o primado do comum sobre o que é individual e isto é a filosofia dos universais. O ser é o mundo das ideias que esmaga o mundo do indivíduo, o único, o irrepetível. A mesma coisa acontece quando a matéria é considerada a essência do ser. O ontologismo universalista não pode reconhecer o valor supremo da personalidade: a personalidade é um meio, uma ferramenta do universalmente comum.

Na realidade mais viva, a essência é individual em sua existencialidade, enquanto o universal é uma criação da razão (Duns Scotus). A filosofia dos valores ideais é caracterizado pelo mesmo esmagamento da personalidade, e nem há necessidade de se opor à filosofia do ser abstrato. A filosofia real é a filosofia da entidade viva concreta e das entidades e é a que mais corresponde ao cristianismo. É também a filosofia do espírito concreto, pois é no espírito que o valor e a ideia devem ser encontrados. O sentido também é algo que existe e por sua existência é comunicado àqueles que existem. Ser e devir devem possuir um portador vivo, um sujeito, uma entidade viva concreta. O que existe concretamente é mais profundo do que o valor e vem antes dele, e a existência é mais profunda que o ser.

O ontologismo tem sido a metafísica do intelectualismo. Mas as palavras ontologia e ontologismo são usadas em sentido amplo e raramente são identificadas com o realismo metafísico como um todo. Hartmann diz que o irracional na ontologia é mais profundo do que o irracional no misticismo, pois ele está além dos limites não só do que pode ser conhecido, mas também do que pode ser experimentado. Mas dessa maneira a profundidade ontológica é atribuída a um nível ainda maior (ou mais profundo) do que a possibilidade da experiência, isto é, do que a existência. Esta profundidade ontológica é muito parecida com o Incognoscível de Spencer. Em Fichte o ser existe por causa da razão e não o contrário. Mas o ser é o fruto da razão e a razão, além disso, é uma função da vida primária ou da existência. Pascal vai mais fundo quando diz que o homem é colocado entre o nada e o infinito. Esta é a posição existencial do homem, e não uma abstração do pensamento.

Houveram tentativas de estabilizar o ser e fortalecer sua posição entre o nada e o infinito, entre o abismo inferior e o superior, mas isso foi apenas um ajuste da razão e da consciência às condições sociais da existência no mundo objetificado. Mas o infinito rompe a partir de baixo e de cima, age sobre os homens, e remove o ser estabilizado e a  consciência estabelecida. Dá origem ao sentimento trágico da vida e à perspectiva escatológica.

E isso explica o fato de que o que eu chamo de metafísica escatológica (que também é uma metafísica existencial) não é ontologia. Ela nega a estabilização do ser e prevê o fim do ser, porque o considera como objetificação. Neste mundo, de fato, o ser é mudança, não repouso. Isso é o que é verdade em Bergson. Já disse que o problema da relação entre pensamento e o ser foi posto de forma errada. A verdadeira afirmação do problema baseou-se no fracasso em compreender o fato de que o conhecimento é o acender da luz dentro do ser, e não no assumir uma posição diante do ser como objeto.
A teologia apofática é de imensa importância para a compreensão do problema do ser. Ela é visível na filosofia religiosa indiana e, no Ocidente, principalmente em Plotino, nos neoplatónicos, em Dionísio, o Areopagita, em Eckhardt, em Nicolau de Cusa e no misticismo especulativo alemão. A teologia catafática racionalizou a idéia de Deus. Aplicou a Deus as categorias racionais que foram elaboradas em relação ao mundo objeto. E assim foi afirmado, de forma clara, como uma verdade básica, que Deus é ser. O tipo de pensamento adaptado ao conhecimento do ser lhe foi aplicado, tipo de pensamento que é marcado com a permanente impressão do mundo fenomênico, natural e histórico. Esse conhecimento cosmomórfico e sócio-mórfico de Deus levou à negação da verdade religiosa fundamental de que Deus é mistério e que o mistério está no coração de todas as coisas.
O ensino da teologia catafática, no sentido de que Deus é ser e que é cognoscível em conceitos, é uma expressão do naturalismo teológico. Deus é interpretado como natureza e os atributos da natureza são transferidos para ele (todo-poderoso, por exemplo); da mesma forma como na maneira sociomórfica as propriedades de poder são transferidas a ele. Mas Deus não é natureza, e não é ser, ele é Espírito. O Espírito não é ser, está acima do ser e está fora da objetificação. O Deus da teologia catafática é um Deus que se revela na objetificação. É uma doutrina sobre o que é secundário e não sobre o que é primário. O importante processo religioso no mundo é o de espiritualizar a idéia humana de Deus. O ensino de Eckhardt sobre Gottheit como possuindo maior profundidade do que Gott é profundo. Gottheit é mistério e o conceito de criador do mundo não é aplicável a Gottheit. Deus, como a primeira e a última coisa, é o não-ser que é supra-ser.
A teologia negativa reconhece que há algo mais elevado do que o ser. Deus não é ser. Ele é maior e mais elevado, mais misterioso do que nosso conceito racional de ser. O conhecimento do ser não é a última coisa, nem a primeira. O Uno de Plotino está do outro lado do ser. A profundidade da teologia apofática de Plotino, entretanto, é distorcida pelo monismo segundo a qual a entidade separada emana da adição do não-ser. Isso seria verdade, se por "não-ser" entendemos a liberdade enquanto distinta da natureza. O ensino de Eckhardt não é panteísmo, não pode ser transformado na linguagem da teologia racional, e aqueles que se propõem chamá-lo de teo-panteísmo possuem um termo melhor. Otto está certo quando fala do supra-teísmo e não do anti-teísmo de Sankhara e de Eckhardt. É preciso elevar-se acima do ser.
A relação que subsiste entre Deus, o mundo e o homem não deve ser pensada em termos de ser e necessidade. Deve ser concebido pelo pensamento que está integrado na experiência do espírito e da liberdade. Em outras palavras, deve ser pensado em uma esfera que está além de toda objetivação, de poder, de autoridade, causa, necessidade e externalidade. O sol fora de mim denota minha queda, deveria estar dentro de mim e emitir seus raios dentro de mim.
Isto tem, acima de tudo, importância para o significado cosmológico, e significa que o homem é um microcosmo. Mas no problema que se refere às relações que subsistem entre o homem e Deus, certamente não deve ser entendido como uma identidade panteísta. Tal forma de pensar é sempre evidência de um pensamento racionalista sobre o ser em que tudo é relegado a um lugar exterior ou identificado com alguma coisa. Deus e o homem não são externos um ao outro, nem afastado um do outro, nem são identificados, a natureza de um não desaparece no outro. Mas é impossível elaborar conceitos adequados sobre isso, somente podendo ser expresso em símbolos. O conhecimento simbólico que lança uma ponte de um mundo para o outro é apofático.
O conhecimento por conceitos que estão sujeitos às leis restritivas da lógica, é adequado apenas ao ser, que é uma esfera secundária objetivada, e não atende às necessidades do mundo do espírito, que está fora da esfera do ser ou do supra-ser. O conceito de ser tem sido uma confusão do mundo fenomenal com o noumenal, ou do secundário com o primário, do predicado com o sujeito. O pensamento indiano tomou a visão certa ao afirmar que o ser depende do ato. Fichte também mantém a existência do ato puro. O ser é postulado como um ato de espírito, é derivativo. O que é verdadeiro não significa o que pertence ao ser, como a filosofia escolástica medieval mantinha. Existentia não é apreendida pelo intelecto, ao passo que a essentia é apreendida, simplesmente porque é um produto do intelecto. O que é verdadeiro não significa aquilo que pertence ao ser, mas o que pertence ao espírito.
Uma questão de grande importância na questão da relação entre a teologia catafática e a apofática é a elaboração da idéia do Absoluto, e isso tem sido em geral a ocupação da filosofia, e não da religião. O Absoluto é a fronteira do pensamento abstrato, e o que os homens desejam é dar um caráter positivo a seu caráter negativo. O Absoluto é o que é separado e auto-suficiente, não há no Absoluto nenhuma relação com qualquer outro. Nesse sentido, Deus não é o Absoluto, o Absoluto não pode ser o Criador, e não conhece nenhuma relação com qualquer outra coisa. O Deus da Bíblia não é o Absoluto. Pode-se colocar, de forma paradoxal, que Deus é o Relativo, porque Deus tem relação com o outro, isto é, com o homem e com o mundo, e conhece a relação do amor. A perfeição de Deus é a perfeição de sua relação; paradoxalmente falando, é a perfeição absoluta dessa relação. Aqui o estado de ser absoluto é o predicado, não o sujeito. É duvidoso que se possa admitir a distinção que Soloviev traça entre o Existente Absoluto e o Absoluto que está vindo-a-ser; não há nenhum vir-a-ser no Absoluto. O Absoluto é o único, e a mente pensante pode dizer isso do Gottheit, embora o diga muito insuficientemente.
Uma prova real, não verbal, do ser de Deus é, de qualquer modo, impossível, porque Deus não é ser, porque o ser é um termo que pertence ao naturalismo, enquanto que a realidade de Deus é uma realidade do espírito, da esfera espiritual que está fora daquilo que pertence ao ser ou ao supra-ser. Deus não pode, em nenhum sentido, ser concebido como um objeto, nem mesmo como o objeto mais elevado. Deus não pode ser encontrado no mundo dos objetos. A prova ontológica compartilha a fraqueza de todo ontologismo. O serviço que Husserl prestou em sua luta contra todas as formas de metafísica naturalista deve ser reconhecido. O naturalismo compreende a plenitude do ser em termos de forma de uma coisa material, a naturalização da mente considera a mente como parte da natureza. Mas existência tem diferentes significados em diferentes esferas. Husserl faz uma distinção entre o ser de uma coisa e o ser da mente. Em sua visão, a mente é a fonte de todo ser, e nesse aspecto ele é um idealista. É o ser da consciência que ele está interessado.

É corretamente apontado que há uma diferença entre Husserl e Descartes, na medida em que este último não se preocupou com uma investigação sobre os vários significados da existência. Mas Husserl trabalha com isso e procura passar de uma teoria do conhecimento para uma teoria do ser. Mas ele preserva o ontologismo que vem de Platão. É sobre o ser que ele mantém sua atenção fixa. Mas ainda há mais para ser dito, que não só as coisas, mas até mesmo os Wesenheiten também existem apenas para a mente, e isso significa que estão expostos ao processo de objetificação.  Atrás disto está uma esfera diferente, a esfera do espírito. O Espírito não é o ser, mas o existente, aquilo que existe e possui verdadeira existência, e não está sujeito à determinação de nenhum ser. Espírito não é um princípio, mas personalidade, ou seja, a forma mais elevada de existência.
Aqueles idealistas que ensinaram que Deus não é ser, mas existência e valor, simplesmente têm ensinado, embora de forma distorcida e diminuída, a doutrina escatológica de Deus. Deus se revela neste mundo e é apreendido eschato-logicamente. Isso ficará mais claro nos dois últimos capítulos deste livro. Eu mantenho uma filosofia de espírito, mas ela difere da metafísica "espiritualista" tradicional. O Espírito não é entendido como substância, nem como outra natureza comparável à natureza material. Espírito é liberdade, não natureza: espírito é ato, ato criativo; tampouco é o ser que está congelado e determinado, ainda que de uma forma diferente. Para a filosofia existencial do espírito, o mundo material natural é uma queda, é o produto da objetificação, a auto-alienação dentro da existência. Mas a forma do corpo humano e a expressão dos olhos pertencem à personalidade espiritual e não se opõem ao espírito.

A filosofia ontológica não é uma filosofia da liberdade. A liberdade não pode ter sua origem no ser, nem ser determinada pelo ser: ela não pode entrar em um sistema de determinismo ontológico. A liberdade não sofre o poder determinante do ser e nem da razão. Quando Hegel diz que a verdade da necessidade é a liberdade, ele nega a natureza primária da liberdade e subordina-a inteiramente à necessidade. E pouco ajuda quando Hegel afirma que a condição finita do mundo é a consciência da liberdade do espírito, e que o objetivo final é a realização da liberdade. A liberdade é representada como o resultado de um processo necessário no mundo - como um dom da necessidade.  Mas então, tem de ser dito que no próprio Hegel Deus é um resultado do processo do mundo; ele vem-a-ser dentro da ordem do mundo. A escolha tem de ser feita - ou o primado de ser sobre a liberdade, ou o primado da liberdade sobre o ser. A escolha estabelece dois tipos de filosofia. A aceitação do primado do ser sobre a liberdade é inevitavelmente um determinismo aberto ou disfarçado. A liberdade não pode ser um tipo de efeito da ação determinante ou geradora de qualquer coisa ou pessoa; ela escapa para a profundidade inexplicável, para o abismo sem fundo. E isso é reconhecido por uma filosofia que toma como ponto de partida o primado da liberdade sobre o ser, a liberdade que precede o ser e tudo o que lhe pertence.
Mas a maioria das escolas de pensamento filosófico estão sob o domínio do ser determinado e determinante. E esse tipo de filosofar está sob o poder da objetificação, isto é, na expulsão da existência humana para o exterior. "No princípio era o Verbo" (Logos). Mas no princípio também estava a liberdade. O Logos estava em liberdade e a liberdade estava no Logos. Isso, no entanto, é apenas um dos aspectos da liberdade. Há outro aspecto, aquele em que a liberdade é inteiramente externa ao Logos e ocorre um choque entre o Logos e a Liberdade. Assim, a vida do mundo é um drama, pois está cheia da sensação de tragédia e antagonismo de princípios diametralmente opostos. Há uma dialética existencial da liberdade: ela avança para a necessidade, a liberdade não só liberta, mas também escraviza. Não há um desenvolvimento suave no processo de alcançar a perfeição. O mundo vive em tensões da paixão, e o tema básico de sua vida é a liberdade. As doutrinas filosóficas da liberdade dão pouco contentamento para a maioria. A maioria se encolhe ao entrar em contato com o mistério dela, e possuem medo de penetrar nesse mistério.

[...]
A metafísica alemã, em contraste com a latina e grega, tomava um princípio irracional como fonte primária do ser, não a razão, que inunda o mundo como a luz do sol, mas como vontade, ação. Isto vem de Boehme, e sob a superfície sua influência pode ser rastreada em Kant, Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer. A possibilidade de uma filosofia da liberdade foi trazida à luz, uma filosofia que se baseia no primado da liberdade sobre o ser. Hegel não permanece fiel à filosofia da liberdade, mas nele também é possível observar o princípio enunciado por Boehme; ele também se inclina sobre o que está além dos limites do ontologismo. Kant deve ser incluído como um fundador da filosofia da liberdade.
Tudo nos leva à conclusão de que o ser não é o fundo último, que existe um princípio que precede a emergência do ser e que a liberdade está ligada a esse princípio. A liberdade não é ôntica, mas meônica. Ser é um produto secundário e sempre ocorre que nele a liberdade já é limitada, e até desaparece completamente. O ser é a liberdade congelada, é um fogo que foi sufocado e esfriou: mas a liberdade na fonte principial é ardente. Esse resfriamento do fogo, essa coagulação da liberdade é, de fato, a objetivação. O ser é levado a nascer pela consciência transcendental quando ela se volta para o objeto. Ao passo que o mistério da existência primária com sua liberdade, com seu fogo criador, é revelado na direção do sujeito. Vislumbres de elementos de uma filosofia da liberdade já podem ser vistos no maior dos escolásticos, Duns Scot, embora ele ainda estivesse acorrentado. A influência de Boehme é de fundamental importância em Kant. É também um tema fundamental em Dostoievski, cuja obra criativa é de grande importância na metafísica.
O mundo e o homem não são nem um pouco o que parecem para a maioria dos metafísicos profissionais, inteiramente concentrados nisso, na medida em que estão no lado intelectual da vida e no processo de conhecer. São apenas alguns deles que romperam em direção ao mistério da existência, e os filósofos pertencentes a tradições acadêmicas particulares são ainda menos. O Ser foi entendido como idéia, pensamento, razão, nous, ousia, essentia, porque era de fato um produto da razão, do pensamento, da idéia. O espírito aparentava, para aos filósofos, ser o nous, porque dele era extraído o sopro de vida primordial e sobre ele estava o selo do pensamento objetivador. Kant não trouxe à luz os sentimentos transcendentais, volições e paixões que condicionam o mundo objetivo das aparências. Não me refiro a paixões psicológicas nem volições psicológicas, mas transcendentais, que condicionam o mundo dos fenômenos a partir do mundo noumenal.
A vontade e a paixão transcendentais são capazes de serem transformadas e orientadas para outra direção, podem revelar um mundo dentro da profundidade do sujeito, na mente, antes de ser racionalizado e objetificado. De tal forma o próprio ser pode parecer-nos como uma paixão arrefecida e uma liberdade congelada. A paixão primária reside na profundidade do mundo, mas é objetificada, torna-se fria, torna-se estabilizada e é substituída pelo egoísmo. O mundo como paixão é transformado no mundo como uma luta pela vida.

Nicolas Hartmann, um típico filósofo acadêmico, define o irracional de maneira negativamente epistemológica, como aquilo que se tornou parte do conhecimento. Mas o irracional tem também um significado diferente, um significado existencial. É necessária uma nova paixão, uma nova vontade apaixonada, para derreter o mundo congelado, determinado, e trazer o mundo da liberdade à luz. E tal paixão, tal vontade apaixonada pode ser incendiada nos cumes da consciência, depois de todas as perguntas de teste da razão. Há uma paixão primária, original, a vontade apaixonada, que é também a vontade final e última. Eu a chamo de messiânica. É somente pela paixão messiânica que o mundo pode ser transformado e liberto da escravidão.

A paixão é, por natureza, dual, pode escravizar e pode libertar. Há fogo que destrói e reduz a cinzas, e há fogo que purifica e cria. Jesus Cristo disse que ele veio para trazer fogo do céu e desejou que pudesse ser acendido. O fogo é o grande símbolo de um elemento primordial na vida humana e na vida do mundo. As contradições de que é feita a vida do mundo e do homem são semelhantes ao elemento ígneo, que está presente até mesmo em nosso pensamento. O pensamento criativo, que experimenta oposição e é posto em movimento por ela, é pensamento ígneo. Hegel compreendeu isso na esfera da lógica. Mas a base ígnea ardente do mundo, para a qual os homens raramente rompem por causa de sua vida banal prosaica maçante e para a qual os homens de gênio rompem, dá origem ao sofrimento. O sofrimento pode arruinar os homens, mas há profundidade nele, e ele pode romper o mundo congelado da rotina do dia-a-dia.
O fogo é um símbolo físico do espírito. De acordo com Heráclito e Boehme, o mundo é abraçado pelo fogo, e Dostoiévski sentia que o mundo era vulcânico. E este fogo se encontra tanto na vida cósmica como na profundidade do homem. Boehme revelou um anseio, o anseio do nada para se tornar algo, a vontade primordial que saí do abismo. Em Nietzsche, a vontade de poder dionisíaca, embora expressa de forma maligna, era o mesmo fogo fundidor e flamejante. O elan vital de Bergson, embora seja dado de forma muito acadêmica e com sabor de biologia, nos diz que o fundamento metafísico do mundo é o impulso criativo e a vida. Frobenius, na esfera mais restrita da filosofia da cultura, fala do agito, do aperto da emoção e do choque como fontes criativas de cultura. Shestov sempre fala de um choque como fonte de verdadeira filosofia. E, verdadeiramente, o choque é uma fonte de força na percepção do mistério da existência humana e da existência do mundo, o mistério do destino. Pascal e Kierkegaard foram pessoas que haviam sido sujeitadas a choques desse tipo. Mas suas palavras eram palavras de horror e quase desespero. Mas é num estado de horror e do desespero que o homem move em seu caminho, muito embora o terror e o desespero não definem aquilo que o mundo e o homem são em sua realidade primária e vida original. A realidade primária, a vida original é a vontade criativa, a paixão criativa, o fogo criativo. A partir dessa fonte primária de sofrimento, o horror e o desespero realmente emergem. No mundo objetivo e nas aparências já vemos o processo de resfriamento e o reino da necessidade e da lei. A resposta do homem ao chamado de Deus deveria ter sido ato criativo, no qual o fogo ainda era conservado. Mas a queda do homem teve como resultado que a única resposta possível tomou a forma de lei.
Nisso se oculta o mistério das relações divino-humanas, e deve ser entendido não de maneira objetificada, mas existencial. Mas a paixão criativa é preservada no homem mesmo em seu estado decaído. É mais claramente visto no gênio criativo, e permanece ininteligível para as vastas massas da humanidade, submersas como estão na rotina diária maçante. Na profundidade do homem está escondida a paixão criativa do amor e da simpatia, a paixão criativa de conhecer e dar nomes às coisas (Adão deu nomes às coisas), a paixão criativa pela beleza e poder de expressão. Nas profundezas do homem existe uma paixão criativa pela justiça, em assumir o controle da natureza: e há uma paixão criativa geral para um impulso exultante vital e êxtase. Por outro lado, a queda do mundo objeto é o sufocamento da paixão criativa e uma demanda de esfriamento.
A realidade primária e a vida original se manifestam para nós de duas formas: no mundo da natureza e no mundo da história. Veremos mais adiante que estas duas formas do mundo, como aparências, estão ligadas a diferentes tipos de tempo. Enquanto a vida na natureza flui no tempo cósmico, a vida na história avança no tempo histórico. Para a metafísica do tipo naturalista, o ser é a natureza, não necessariamente material, mas também a natureza espiritual. O espírito é naturalizado e entendido como substância. Sendo assim, a história que é preeminentemente movimento no tempo é subordinada à natureza, e transformada em uma parte da vida cósmica. Mas a posição fundamental da historiosofia, em oposição à filosofia naturalista predominante, consiste em apenas isso: não é a história que faz parte da natureza, mas a natureza que faz parte da história. Na história, o destino e o sentido da vida do mundo são trazidos à luz.
Não é no ciclo da vida cósmica que o significado pode ser revelado, mas no movimento dentro do tempo, na realização da esperança messiânica. As fontes da filosofia da história não se encontram na filosofia grega, mas na Bíblia. O naturalismo metafísico, que considera o espírito como natureza e substância, é ontologismo estático. Ele faz uso do simbolismo espacial de uma concepção hierárquica do cosmos, não de símbolos associados ao tempo. Mas, por outro lado, interpretar o mundo como história, é ter uma visão dinâmica do mesmo, e esta visão compreende a emergência do que é novo.
Aqui há um embate entre dois tipos de Weltanschauung, um dos quais pode ser descrito como cosmocentrismo e o outro como antropocentrismo. Mas a natureza e a história estão sob o poder da objetivação. A única saída possível dessa objetivação é através da história, através da auto-revelação da meta-história. Não se deve buscar submergindo-se no ciclo da natureza. A saída está sempre ligada a um terceiro tipo de tempo, com o tempo existencial, o tempo da existência interior. Somente uma filosofia existencial não objetivada que pode chegar ao mistério e significado da história do mundo e do homem. Mas quando se aplica à história, a filosofia existencial torna-se escatológica.
A filosofia da história, que não existia no que se refere à filosofia grega, não pode deixar de ser cristã. A história tem um sentido simplesmente porque o sentido, o Logos, apareceu nele; o Deus-homem se encarnou, e tem significado porque está se movendo em direção ao reino de Deus - ao reino da Deus-humanidade. O tema que, em sentido derivado, é chamado de "ser", diz respeito ao encontro e à ação recíproca entre a vontade apaixonada primordial, o ato criativo primordial, a liberdade primordial e o Logos, o Sentido. E estes são flashes da liberdade, vontade, desejo e paixão brilhando pelo poder do Logos-Sentido, através da aquisição da espiritualidade e um senso de liberdade espiritual. A paixão na vida cósmica é irracional em caráter e subconsciente, e ela precisa ser transformada e tornar-se supra-racional e supra-consciente. Somos informados sobre a natureza destrutiva da paixão, e os homens atribuem uma supremacia da razão e prudência sobre a paixão. Mas a vitória sobre o mal e as paixões escravizantes também é uma vitória apaixonada, é a vitória da luz radiante, a luz de um sol, não da razão objetificante. Será a ausência de paixão um erro na nomenclatura ou uma idéia equivocada? O sol espiritual não é desapaixonado. A semente brota da terra quando os raios do sol caem sobre ela.
A última tentativa de construir uma ontologia é a obra de Heidegger, e ele afirma que sua ontologia é existencial. Não se pode negar que o pensamento de Heidegger exibe grande intensidade de esforço intelectual, concentração e originalidade. Ele é um dos filósofos mais sérios e interessantes do nosso tempo. Sua busca por novas frases e novas terminologias é um pouco irritante, ainda que seja um grande mestre a este respeito. Em toda questão metafísica, ele corretamente leva toda a metafísica à vista. Não podemos deixar de notar  - que é uma coisa reveladora e surpreendente - que a última ontologia, na qual este dotado filósofo do Ocidente chegou, não é uma teoria do ser, mas do não-ser, do nada. E a sabedoria mais atualizada sobre o assunto da vida do mundo é expressa nas palavras 'Nichts nichtet'. O fato de Heidegger suscitar o problema do nada, do não-ser, e que, em contraste com Bergson, reconhece sua existência, deve ser considerado como um serviço que lhe devemos. A este respeito, pode-se notar um parentesco com os ensinamentos de Boehme sobre o Ungrund. Sem o nada, não haveria existência pessoal nem liberdade.
Mas Heidegger é talvez o pessimista mais extremo na história do pensamento filosófico do Ocidente. De qualquer forma, seu pessimismo é mais extremo e mais profundo do que o de Schopenhauer, pois este estava ciente de muitas coisas que eram um consolo para ele. Além disso, ele não nos dá, de fato, nem uma filosofia do ser, nem uma filosofia do Existenz, mas apenas uma filosofia do Dasein. Ele está inteiramente preocupado com o fato de que a existência humana é lançada no mundo. Mas este ser lançado no mundo, no das man, é a queda. Na visão de Heidegger, a queda pertence à estrutura do ser; o ser lança suas próprias raízes na existência comum. Ele diz que a ansiedade é a estrutura do ser. Ansiedade traz o ser para o tempo.
Mas de que altura tudo isso pode ser visto?  Que significado inteligível pode-se dar? Heidegger não explica de onde é adquirido o poder de conhecer as coisas. Ele olha para o homem e para o mundo exclusivamente a partir de baixo, e não vê nada além da parte mais inferior deles. Como homem, ele está profundamente perturbado por este mundo de cuidado, medo, morte e descontentamento diário. Sua filosofia, na qual ele conseguiu mostrar certa verdade amarga - se bem que não a verdade final - não é uma filosofia existencial, e a profundidade da existência não se faz sentir nele.
Essa filosofia permanece sob o domínio da objetificação. O estado de ser lançado no mundo, no das man, é, em verdade, uma objetificação. Mas, em todo caso, este ensaio sobre a ontologia não tem quase nada em comum com a tradição ontológica que  descende de Parmênides e Platão. Também não é uma questão de acaso, fato muito significativo, que esta última das ontologias encontra o seu apoio no nada. Isso não significa que é necessário rejeitar a filosofia ontológica e passar para uma filosofia existencial do espírito, que não é ser, mas que também não é não-ser?