O entendimento moderno do ser implica o abandono deliberado
da abordagem ontológica para a natureza da realidade.
A humanidade na era moderna visa explorar todas as facetas
da realidade e da existência, tudo o que existe e acontece. Os limites mais
distantes do microcosmo e macrocosmo devem ser acessíveis para a mente humana.
Mas a realidade nos interessa como fenômenos objetivos e constituintes
funcionais, não como um fato existencial. A própria onticidade das coisas
("ser enquanto ser"), ou a existência como o principal fato de nosso
ser, o que chamamos de problema ontológico, se tornou marginal. Questões
relacionadas com a causa, a finalidade ou propósito da existência, o princípio
causal ou origem dos seres, as relações entre as coisas da mesma espécie, ou
entre conceitos universais e entidades individuais, já não engajam as pessoas
modernas.
Esta rejeição é facilmente explicada. A ontologia está
associada com uma arrogância intelectual e a inflexibilidade dogmática
fundamentada pelo pensamento medieval. A ideologia religiosa dominante na Idade
Média européia era baseada na absoluta prioridade da ontologia. Apodítica
obrigatória, interpretação abstratas dos fatos da existência e limitadas
investigações sobre o que era conhecível. A substituição do conhecimento
empírico pelo raciocínio abstrato inspirou uma ênfase na ontologia interpretada
como a superioridade axiomática do transcendente sobre o temporal e sensível, e
como a autoridade absoluta dos representantes terrestres daquele poder
transcendente.
A ruptura com o passado medieval pressupõe o rompimento com
o problema ontológico. A humanidade na era moderna se recusa reconsiderar
questões que aprisionaram-na por séculos em uma subserviência humilhante à uma hermenêutica
e a uma camisa de força reguladora de proibições axiomáticas. A rejeição
moderna e a marginalização da ontologia é identificada com o senso comum empírico,
liberdade de pensamento e de pesquisa, busca de uma prova matemática e a
validação experimental.
Parece que não há sentido em interpretar o fato da
existência, ou em conectá-lo com alguma causa hipotética ou extra-empírica.
Coisas reais são de interesse como parte da "natureza": a matemática
e a experiência decodificante racional e a função natural como um todo, fazendo
a interpretação ontológica ser supérflua. A mente humana pode dar sentido aos
fatos reais como funções rígidas ou mutáveis e pode intervir para fins
utilitários.
A reivindicação da humanidade por uma maior soberania
possível sobre a natureza através do intelecto destaca a compreensão funcional
da natureza como "devir". As observações científicas tendem a
confirmar as leis estáveis e imutáveis da natureza. Procura-se na natureza uma
estrita conformidade as leis, o que implica um determinismo. Descartes, os
empiristas ingleses, os racionalistas franceses e Newton construíram uma imagem
mecanicista do universo e seu funcionamento. O cosmos é um relógio bem
interligado, e é de menor interesse se algum Deus criou e colocou em operação,
já que desde então funciona em sua própria consistência estrita lógica. Se
decodificarmos corretamente como a natureza funciona, podemos domá-la para
servir nossas próprias necessidades e objetivos.
Esta imagem mecanicista do mundo se estende até a biologia
no instrutivo mas exagerado livro de La Mettrie, L'homme machine, chegando a
uma brilhante conclusão na teoria de Darwin da evolução das espécies. A
interpretação mecanicista é uma metodologia "constante" e também uma
garantia de validade científica, adotado como verdade auto evidente pelas
ciências sociais. O caráter "científico" da ciência social pressupõe
a classificação de fenômenos da vida sob constantes mensuráveis que permitem a
inferência. Observações definem consistentemente os fenômenos comportamentais
repetidos sob as mesmas condições, assim as leis causais podem ser formuladas.
Causas interdependentes e efeitos no comportamento coletivo podem ser
articuladas como um sistema racional. A previsão positiva torna-se então uma
justificativa utilitária da sistematização científica.
A abordagem científica para a sociedade significa evitar as
questões ontológicas - os seres humanos são equiparados a "átomos
físicos", como unidades neutras do todo social. Se a antropologia
darwiniana se torna a base auto-evidente das ciências sociais, o enigma
existencial da alteridade subjetiva pode ser anulado. Um ser humano é uma
unidade biológica assumindo o seu lugar com qualquer outro elo da cadeia de
desenvolvimento a partir do organismo mais simples e menos perfeito ao mais
complexo e completo, um desenvolvimento regulado pela implacável lei da
"seleção natural". O instinto de auto-preservação forma e controla a
simbiose social, que é um produto do poder deste impulso.
Desta forma, a justiça e a moralidade são separadas de
qualquer pretensão metafísica. O conceito de "indivíduo natural"
inspira a lógica da "justiça natural", e os princípios reguladores
racionalistas da ética tornaram-se "autônomos", como no utilitário
"contrato social".
A arte da política é igualmente organizada como uma
"ciência" metódica equilibrando os direitos e obrigações do indivíduo
social. Esta é a era dos "direitos do indivíduo". A ideia de
igualdade de direitos é derivada da semelhança natural entre indivíduos e sua
semelhança biológica básica. O balanço de direitos e obrigações substitui
interesse no problema ontológico, questões colocadas pelo livre jogo das forças
sociais e os aspectos indeterminadas de relações interpessoais.
Paralelo a isso, a ciência política interpreta e programa os
problemas humanos sobre a produção e troca, como se o indivíduo natural fosse
uma unidade de produção e consumo. As unidades são equiparadas uma a outra,
reduzindo-as ao menor denominador comum, cada pessoa produz e consome bens e
serviço. A variedade da produção humana é reduzida a uma visão de
"trabalho" como "força produtiva", identificado com os
meios utilitários de produção. Ao mesmo tempo, "unidade humana"
despersonalizada é julgada de acordo com os subprodutos do
"mecanismo" econômico tais como: "renda per capita",
"produto per capita", "poder de compra", "horas-homem"
para a medição da produtividade, etc ou então funciona como uma constante para
construção de conceitos macroeconômicos como força de trabalho, produto
nacional bruto, rendimento médio, poder de compra médio, etc.
Esta cosmologia mecanicista e sua antropologia análoga de
prioridades sociais e práticas assumem o axiológico "progresso" da
humanidade e da natureza. A demanda por progresso rompe com a ontologia
medieval. Na prática, evita a metafísica ou transcendência, até sacrificando o
próprio progresso que está sendo perseguido. Mas o progresso axiológico da
humanidade e da natureza é menos preocupante do que a mudança brutal em sua
interpretação ontológica. Pseudo-ciência e afirmações sobre o sentido permeiam
a idade moderna, desvalorizando quando não depreciando tanto o homem e a
natureza, sem qualquer protesto. A teoria da evolução tem sido popularizada
como uma simples descendência da humanidade a partir dos macacos, e as pessoas
querem acreditar que a vida e seres inteligentes existem em outros planetas,
apesar de pesquisas científicas mostrarem o contrário. A humanidade moderna
parece incapaz de suportar a superioridade ontológica e a singularidade
existencial. Nós insistimos em depreciar a nós mesmos, submetendo-nos à
dependência natural e necessidades, reivindicando para nós mesmos um nível
existencial de um animal e a casualidade da natureza. Esse "realismo"
racionalismo procurando por "manter uma realidade inferida" e uma
"libertação total de qualquer ilusão metafísica" é, em si,
provavelmente, outra ilusão.
Do livro - Metafísica Pós-Moderna por Christos Yannaras (Meta-neoterike meta physike, Athens, 1993)
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