René Guénon (1986-1951), notável expositor francês da
philosophia perennis, tem desfrutado de uma reputação entre os que estão
familiarizados com seus escritos como, talvez, o metafísico proeminente do
século XX.
Embora sua obra completa compreende por volta de vinte e
três volumes, o núcleo de sua exposição metafísica pode ser encontrado em três
obras: O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta, o Simbolismo da Cruz, e os
Estados Múltiplos do Ser. Todas as três obras complementam atentamente uma a
outra e devem ser tomadas como um todo, a fim de ser devidamente compreendidas.
No entanto, cada uma possui um carácter distintivo: O Homem e seu Devir, está
intimamente ligado às categorias conceituais específicas e a terminologia do
Advaita Vedanta; O Simbolismo da Cruz, tanto um estudo do simbolismo, bem como
da metafísica, demonstra a gama de domínio doutrinário de Guénon através das
tradições, enquanto articula a metafísica tradicional em um modo particularmente
geométrico. Estados Múltiplos, o mais puro trabalho metafísico de Guénon, é uma
demonstração lógico-dedutiva de princípios metafísicos, categorias e relações
de uma clareza e profundidade surpreendente.
Apesar de suas diferenças de modo e ênfase, todas as três
obras são possuídas pela mesma animadora pergunta: "O que é possível para
o ser humano" Simplesmente render-se a resposta surpreendente de que
Guénon afirma não serviria, pois, se é para ser aceita, ainda que
provisoriamente, ela deve ser conquistada, seguindo a cadeia inferencial de
idéias que levam inexoravelmente em direção a ela. É neste contexto que o
temperamento e formação de Guénon como matemático são particularmente
evidentes: para ele, afirma-se primeiramente os princípios axiomáticos e, em
seguida, se prossegue, em uma maneira quase-lógica de uma prova, na direção
consequentes conclusões.
Guénon começa sua demonstração com um axioma primário, ou
primeiro princípio, que ele chama de infinito metafísico. Para aqueles
familiarizados com as fontes tradicionais, é claro que ele está evocando a
mesma noção como que expressa no Brahman do Shankaracharya, o Gottheit do
Meister Eckhart, o Tao do Lao Tzu, o Uno de Plotino, ou al-Dhat do Ibn 'Arabi.
No entanto, ele deliberadamente forja um vocabulário independente dessas
menções tradicionais, pois, ao abordar um público contemporâneo tipicamente não
familiarizados com essas fontes, ele deseja uma doutrina essencial para valer
por si própria, através da sua coerência intrínseca e independentemente de
quaisquer associações. Guénon é cuidadoso em distinguir o Infinito metafísico
do infinito matemático, que é finito, na medida em que se limita ao domínio dos
números. O Infinito metafísico é simplesmente, e mais convincente, aquilo que
não tem limites de qualquer tipo.
Várias características necessárias seguem sobre esta
definição essencial: O Infinito não possui qualquer limitação, restrição ou
determinação, pois tal anularia claramente a sua infinitude. Ele é único,
abrangente, e uma absoluta totalidade, pois se alguma coisa existir fora dele,
ele não seria o Infinito. É sem partes, pois qualquer parte seria relativo e
finito e poderia, assim, não ter nenhuma medida ou relacionamento comum a ele.
É absolutamente indeterminada, pois qualquer determinação positiva serviria
como uma delimitação e, portanto, não poderia aplicar-se a ele. Pela mesma
medida, é absolutamente afirmado, pois sua indeterminação - a negação de
qualquer definição limitadora - é equivalente à negação da negação como tal e assim,
uma afirmação total. Finalmente, é incontestável, pois sua indeterminação
absoluta implica que não pode ser definido, discutido ou, desta forma,
contestado.
A definição essencialmente apofática da noção do Infinito
metafísico implica também - assim como ele não pode ser racionalmente
contestado - que não está aberto a prova racional. Em vez disso, um outro modo
de discernimento deve ser utilizado, que poderia ser chamado de "intuição
intelectual". Ananda Coomaraswamy, a este respeito, tem escrito sobre a
doutrina tradicional como que possuí uma "inteligibilidade que se
auto-autentica", na medida em que as idéias metafísicas trazem em si sua
própria evidência suficiente. No entanto, tais elementos de prova pode não se
esperar falar para todos: como Frithjof Schuon afirma:
"O Infinito é o
que é;
pode-se entender ou não entender."
O Infinito metafísico, como um todo-abrangente, totalidade
absoluta, pode ser previsto em um aspecto como um todo universal, ou
Possibilidade Universal, como Guénon expressa. A Possibilidade Universal
abrange o total, menos o estritamente impossível, que, como pura negação, é
literalmente um nada e, portanto, não é nenhum limite sobre a infinitude do
Todo. A relação entre o Infinito e Possibilidade Universal podem, a partir de uma
perspectiva, ser concebida como a da perfeição ativa e passiva, de essência e
substância. De um outro ponto de vista, esta relação pode ser considerada como
princípio e o recipiente. Em ambos os casos, apenas há o único Infinito, pois o
Todo de forma alguma é distinto do Infinito como tal.
Tudo o que é possível encontra o seu lugar em relação ao
Infinito, o que pode ser visto como de uma só vez o seu próprio princípio
gerador e seu recipiente abrangente. Neste sentido, e na medida em que está
dentro da Possibilidade Universal e, portanto, sendo não impossível, cada
possibilidade pode se dizer ser real. Isso não significa, porém, que todas as
possibilidades se manifestam. Em geral, qualquer possibilidade pode ser uma
possibilidade de manifestação ou uma possibilidade de não-manifestação. Esta
distinção, entre manifestação e não-manifestação, é a mais fundamental e
universal que pode ser feito dentro da Possibilidade Universal. Aqui, Guénon
distingue entre os dois domínios de não-manifestação e manifestação. Dentro do
domínio de não-manifestação são encontrados tanto o não-manifestável (aquelas
possibilidades de não-manifestação), bem como o manifestável (aquelas
possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestaram). Dentro do
domínio da manifestação são encontrados os manifestados (aquelas possibilidades
de manifestação na medida em que se manifestam). Juntos, os domínios de não
manifestação e manifestação compreendem toda a Possibilidade Universal.
As possibilidades manifestáveis e não-manifestáveis dentro
do domínio de não-manifestação compreendem dois modos distintos e gerais, cada
um em conformidade com sua respectiva natureza. Em contraste, as possibilidades
de manifestação - vistas dentro do domínio tanto de não-manifestação como de
manifestação - possuí um caráter radicalmente diferente nas suas condições
não-manifestadas e manifestadas. No domínio da não-manifestação, todas as
coisas subsistem eternamente em princípio, em permanência absoluta,
indiferenciadas, incondicionadas por quaisquer fatores contingentes ou
limitantes. Por outro lado, no domínio da manifestação, todas as coisas são
transitórias, diferenciadas, condicionadas e contingentes. Em essência, o
domínio de manifestação é o campo de diferenciação, multiplicidade, contingência,
e das alterações, ao passo que o domínio de não-manifestação - ao mesmo tempo
mais simples e principial - antecede a estas condições.
Mesmo quando se manifesta, cada possibilidade de
manifestação permanece fundamentada em seu princípio imediato, que não é outro
senão o seu estado como pura possibilidade de não-manifestação. É através deste
fato que esta encontra a sua subsistência duradoura, independente das condições
particulares e limitantes inerentes à manifestação. O mesmo caso para as
possibilidades individuais de manifestação também vale para os domínios de
não-manifestação e manifestação como tal. Em certo sentido, não-manifestação e
manifestação podem ser considerados como dois domínios separados e
independentes. Em outro, em um sentido mais profundo, o domínio de
não-manifestação pode ser visto como o solo e fundamento da manifestação, da
qual se extrai toda a sua realidade.
Tal como Guénon expressa a articulação da Possibilidade
Universal em termos de manifestação, assim também ele expressa essa articulação
em termos do Ser. Estes dois modos de expressão são intimamente equivalentes,
ainda que não exatamente idênticos: por um lado, ele faz uma distinção entre as
categorias de não-manifestação e manifestação; por outro, entre Não-Ser, Ser e
Existência. Ao esclarecer a relação entre estas duas articulações, podemos
dizer que a não-manifestação e Não-Ser são equivalentes e co-extensivos, assim
como são a manifestação e Existência. Ser é uma categoria intermediária:
não-manifestada mas ainda assim distinta do Não-Ser; a primeira manifestação,
ainda assim distinta da Existência. Em certo sentido, o Ser pode ser dito
aquele aspecto do Não-Ser que é o princípio imediato para a Existência como
tal, ou Não-Ser na medida em que é exprimível à Existência; no entanto, em um
sentido mais profundo, Não-Ser é anterior ao Ser, que é a primeira determinação
em direção à Existência, a primeira distinção para a diferenciação, enquanto o
Não-Ser, em si, é indeterminado e indistinto.
Se o Infinito metafísico pode ser visto sob um duplo aspecto
de princípio e recipiente, de modo que se pode falar de uma só vez de Infinito
metafísico e Possibilidade Universal, essa perspectiva gêmea também é
encontrada nas categorias metafísicas subsequentes de Não-Ser e Ser. Assim, o
Não-Ser pode ser visto como o princípio que contem ou o solo que abrange o Ser,
assim como o Ser carrega essa mesma relação dupla em respeito com a Existência.
Esta relação dupla do princípio e de recipiente é fundamentalmente inerente:
cada categoria antecedente, como a fonte ou base da categoria subsequente a
ela, necessariamente compreende e abrange, em princípio, a totalidade dessa
categoria. Expressando este duplo aspecto metaforicamente, pode-se observar que
o fruto do carvalho é a "semente" do carvalho, ao mesmo tempo em que
abrange, em princípio, todos os aspectos de seu crescimento e forma
subsequente.
Um par de imagens sugestivas pode tornar as relações
fundamentais entre categorias metafísicas mais claras. Considere quatro
círculos ou esferas de assentamento, cada uma associada a uma categoria
metafísica particular. Na [Imagem 1], sugerindo a perspectiva em que cada
categoria antecedente engloba a categoria subsequente, o círculo externo
representa Possibilidade Universal, o próximo o Não-Ser, o próximo o Ser, e do
círculo mais íntimo e final, a Existência. Cada círculo contém o subsequente a
ele, de forma decrescente, traçando a partir Possibilidade Universal à
Existência. Na [Imagem 2], sugerindo a perspectiva em que cada categoria
antecedente é o princípio imediato da categoria subsequente, podemos empregar
os mesmos quatro círculos de assentamento, mas com uma inversão das relações,
pois agora o círculo mais íntimo representará o Infinito Metafísico, o próximo
o Não-Ser, o próximo o Ser, e o círculo externo e final, a Existência. Cada
círculo é o princípio daquele que o sucede, de uma forma radiante, traçando do
Infinito metafísico até a Existência.
Duas consequências adicionais e gerais podem ser verificadas
a partir dessas relações categóricas. Em primeiro lugar, mesmo que uma
categoria antecedente seja metafisicamente distinta da categoria subsequente,
não é isolada dela. A relação principial entre as categorias, na qual a
categoria subsequente é fundamentada e de onde retira sua realidade de seu antecedente,
implica, de certa maneira, que a antecedente participa dela, ou
equivalentemente, "participa pelo” seu antecedente. Mais uma vez,
expressando metaforicamente, um fruto e um carvalho são claramente distintos,
mas há também uma continuidade evidente, na medida em que o fruto participa
principialmente no desdobramento subsequente do carvalho.
A importante e segunda consequência é que, enquanto que a "continuidade
na distinção" entre as categorias é mais imediatamente relevante entre uma
dada categoria e seu antecedente imediata, a extensão de seus princípios deixam
claro que a continuidade deve persistir entre uma categoria e todo o seu
conjunto de antecedentes, pois cada um em sua vez possui uma continuidade em
relação ao anterior. Assim, a Existência participa não só pelo Ser, seu
anterior imediato, mas também pelo Não-Ser e no Infinito metafísico também. O
corolário decisivo é que o Infinito metafísico, enquanto transcendentalmente
único, principialmente participa e está presente na totalidade das subsequentes
categorias metafísicas, até e incluindo a totalidade da Existência. Em última
instância, existe apenas um único Princípio: o próprio Infinito metafísico.
A linguagem da metafísica, necessariamente uma de alta
abstração, torna-se mais acessível por Guénon através do emprego de várias
metáforas adequadas. Assim como o termo Infinito metafísico de uma só vez evoca
e transcende o infinito matemático, Guénon extende essa metáfora numérica para
as outras categorias metafísicas. Assim, o Não-Ser, em sua indiferenciação
não-manifestada, pode ser considerado com o "Zero metafísico"; O Ser,
como a diferenciação primordial, pode ser considerado como "Unidade";
A Existência, tomada em sua abrangência, é uma "Unicidade", que
compreende a multiplicidade como tal, tomada na indefinitude de suas
possibilidades manifestas. A Unidade pode ser vista como a afirmação do Zero,
assim como a Unicidade preserva uma unidade essencial, que, entretanto,
expressa a multiplicidade. Em termos geométricos, pode-se considerar o Não-Ser
como aquele que antecede o espaço e a extensão, o Ser como o ponto primordial,
sem espaço em si, mas possuindo todo o espaço na virtualidade, e a Existência
como a totalidade do espaço, em sua indefinitude da extensão. Da mesma forma,
em termos da fala, pode-se considerar o Não-Ser como o silêncio, como tudo o
que é inexprimível, o Ser como o som puro, ou a pura possibilidade da
expressão, e a Existência como a totalidade do exprimível, de tudo o que é
falado.
A Existência, com o reino das possibilidades manifestas em
toda sua diversidade, em sua multiplicidade diferenciada, está necessariamente
composta de diversos graus ou modos, cada um formado por um conjunto de
possibilidades compatíveis sujeitos a condições em comum, tais como o espaço,
tempo, forma e corporeidade. Dentro desta concepção geral, o ser humano
individual pode ser visto como uma certa coleção de possibilidades manifestas,
tanto corporais quanto sutis, sob certas condições definidoras. Como tal, um
dado ser humano é composto de um determinado grau ou estado da Existência
universal entre a indefinitude de outros. Se a Existência fosse isolada de sua
categoria metafísica antecedente, então um ser humano não seria mais do que uma
unidade fragmentada, presente entre uma diversidade indefinida, isolado em si
mesmo de qualquer outro estado. No nível da individualidade humana, esta é
precisamente a nossa condição existencial. No entanto, a Existência está
principialmente "participada" por suas categorias metafísicas
antecedentes, assim como cada possibilidade manifestada dentro do domínio de
Existência é fundamentada em seu princípio não-manifestado.
A "continuidade na distinção" entre as categorias
metafísicas implica que um ser humano é mais do que a sua individualidade
particular, pois ele carrega em si a marca principial de todos os antecedentes
metafísicos que participam dele. Assim como isto é verdade para um ser humano
em um estado particular de existência, também é válido para todos os Estados,
independentemente da sua natureza. E, no entanto, no final, há apenas um
princípio antecedente - o Infinito metafísico - presente em todas as suas reverberações
ao longo de todas as categorias metafísicas e todas aquelas possibilidades que
compreendem. Neste sentido, pode-se considerar o Infinito metafísico ainda
noutro aspecto, para além da Possibilidade Universal, aquilo que Guénon chama
de Ser integral ou total. Este Ser - que deve ser claramente distinguido tanto
do Ser como uma categoria metafísica, bem como do ser humano individual - pode
ser entendido como o Infinito metafísico em seu aspecto em que principialmente
participa ao longo de toda Possibilidade Universal. Como tal, ele é ao mesmo
tempo singular em si mesmo, mas diferenciado entre as categorias metafísicas e
possibilidades.
Um termo estreitamente relacionado que Guénon emprega é
"o Si." Fundamentalmente, o Si é idêntico ao Ser total, mas a partir
do ponto de vista do indivíduo humano, o Si é aquele princípio último através
do qual todo o conjunto de possibilidades manifestas e não-manifestas que
subsistem o ser humano. O Si, então, pode ser entendido com o Ser total visto
sob o aspecto particular e limitativo de um determinado indivíduo humano. Sob
este aspecto, pode-se dizer, metaforicamente, que se o Ser total é um sol,
então o Si é um raio; se o Ser total é uma tapeçaria, então o Si é um fio. O
Si, como princípio, é a verdadeira realidade do ser humano, a individualidade
sendo só uma modificação transitória e contingente.
O indivíduo humano, do ponto de vista de sua
individualidade, é, na melhor das hipóteses, um fragmento dentro da vasta
multiplicidade de manifestação. Como participado pelo Si, no entanto, o
indivíduo tem sua raiz e remonta ao próprio Infinito metafísico, do qual o Si é
um aspecto particular. Tem que ser assim, pois sem essa continuidade essencial,
o indivíduo estaria completamente sem realidade, desligado de sua sustentação.
Esta continuidade, por toda sua importância fundamental para o indivíduo, não é
sentida, é despercebida e desconhecida. É isso que é ao mesmo tempo a tragédia
e a promessa da condição humana: uma tragédia, pois sem este conhecimento, esta
gnosis, experimentamos a nós mesmos de maneira estreita, fragmentária com a
qual estamos muito familiar; uma promessa, pois nenhuma outra correção é
exigida para esse conhecimento libertador. Nós não podemos fazer nada, pois não
há nada a ser feito; precisamos apenas saber o que é, o que sempre foi, e do
que deve ser.
O que é possível para o ser humano é realizar sua identidade
essencial com o Si, e, portanto, com o Ser integral e total, o Infinito
metafísica em seu aspecto participativo dentro Possibilidade universal. Com
essa realização, o ser humano transcende sua individualidade particular, sua
humanidade, sendo não mais um fragmento, mas uma totalidade. Guénon descreve
esta condição final nas palavras do grande sábio vedântico Shankaracharya:
"O iogue, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como
habitando em si mesmo e, portanto, pelo olho do Conhecimento, ele percebe que
tudo é o Si. Ele sabe que todas as coisas contingentes não são diferentes do Si
e que, além do Si, não há nada."
The Logic of the Absolute
The Metaphysical Writings of René Guénon
by Peter Samsel
Parabola 31:3 (2006), pp.54-61.
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