Uma das razões que
nós vemos hoje intelectuais simpatizando com o comunismo (o que é paradoxal,
pois é bem sabido o desprezo que o comunismo tem para com os intelectuais) está
relacionado com a postura antiburguesa que o comunismo assumiu. Entre outras
coisas, o comunismo afirma representar a superação da "era burguesa"
e que conduzirá a humanidade para um novo realismo, além do subjetivismo,
individualismo, o culto do ego, e todas as outras retóricas idealistas. Se não
é reconhecido o plano exclusivamente econômico e materialista no qual o
comunismo contextualiza essas questões, é provável que este possa exercer certo
poder de sugestão sobre os intelectuais.
Não há dúvida que
atualmente vários processos estão agindo nesta direção. Após a Primeira Guerra
Mundial, esta direção exibiu traços específicos: podemos lembrar na Alemanha o
movimento chamado Neue Sachlichkeit, ou Nova Objetividade; na França, a
corrente inspirada pelo Espirit Nouveau (de inclinações comunistas) estava
destinada a exercer uma influência considerável, especialmente no campo da
arquitetura. Hoje, o comunismo encontra solidariedade com questões semelhantes
que são formuladas em determinados ambientes; assim, não é nenhuma surpresa que
alguns intelectuais sem princípios, que não conseguem entender o último e
contaminante significado do comunismo (conhecido apenas de longe e em teoria),
fique do lado dele, se iludindo, pensando estar em uma posição de vanguarda.
Este
é um erro grave. No entanto, devemos reconhecer que, por si só, uma postura
anti-burguesa possui uma razão de ser. Eu não quero dizer burguesa no sentido
de uma classe econômica, mas sim aquilo que carrega: há um mundo intelectual,
uma arte, costumes e visão geral da vida que, depois de ter sido moldada no
último século em paralelo com a revolução do Terceiro Estado, aparecem como
vazia, decadente e corrupta. A superação resoluta de tudo isso é uma das
condições necessárias para resolver a atual crise da nossa civilização.
Assim,
essas tentativas de reagir contra os aspectos mais extremos da subversão
mundial são muito perigosas, quando elas visam apenas idéias, hábitos e
instituições da era burguesa. Isso equivale a fornecer munição para o inimigo.
A mentalidade e o espírito burguês, com seu conformismo, seu apêndice
psicológico e romantico, seu moralismo e sua preocupação em uma existência
mesquinha e segura em seu materialismo fundamental, encontra sua compensação em
um sentimentalismo e na retórica de palavras de grande humanitarismo e democracia
- tudo isso apenas em uma vida artificiual, periférica e precária, não
importando o quão decididamente sobrevive devido a uma inércia nos estratos
sociais de muitos países do "mundo livre". Portanto, afirmo que
reagir em nome de ídolos, estilo de vidas e valores medíocres do mundo burguês,
como é o caso da grande maioria dos adeptos modernos da "lei e
ordem", significa que a batalha esta perdida desde o início.
No
entanto, assim como a burguesia nas civilizações anteriores situava-se numa
classe socialmente intermediária, entre os guerreiros e a aristocracia política
por um lado e o mero "povo" do outro lado - da mesma forma, existe
uma possibilidade dupla (uma positiva e uma negativa) de superação da burguesia
em geral - a de tomar uma posição firme contra o tipo burguês, a civilização
burguesa, seu espírito e seus valores.
A primeira
possibilidade corresponde a uma direção que conduz para ainda mais baixo, para
uma sub-humanidade coletivizada e materialista, sob a bandeira do realismo
marxista - aos valores sociais e proletários contra a "decadência
burguesa". De fato, é possível conceber uma liquidação de tudo que diz
respeito ao mundo convencional, subjetivista e "irreal" burguês,
levando não para cima, mas para baixo daquilo que é próprio da ideia normal da
personalidade. Isso acontece quando o
resultado final é o indivíduo em massa, o "coletivo" da ideologia
soviética, no clima mecanizado e sem alma que o acompanha. Neste caso, o
resultado da liquidação do mundo burguês pode atingir apenas a mais uma
regressão: vamos para o que está mais abaixo ao invés daquilo que está acima da
pessoa. É o oposto daquilo que aconteceu nas grandes civilizações
"objetivas" (para usar a expressão de Goethe), que impulsionava o
anonimato e o desdém para o indivíduo, embora num contexto de valores
superiores, heróicos e transcendentes.
Da mesma forma, se o
esforço em direção a um novo realismo é correto, podemos ver claramente o erro
daqueles que consideram apenas os graus inferiores da realidade como real. Isto
acontece quando o realismo é formulado essencialmente em termos economicos
(como acontece no comunismo). O mesmo se aplica a algumas tendências que
surgiram nas artes ou nas margens da filosofia, e que estão ao lado dos
movimentos de esquerda, assumindo uma postura anticonformista para a sociedade
atual. Uma dessas tendencias se autodenomina "neo-realismo",
enquantro a outra é um existencialismo radical inspirado por Sartre e seu
círculo. Nessa filosofia, "existência" é identificada com as formas
de vida mais rasas; este tipo de existência é separado de qualquer princípio
superior, estimando sua imediação angustiada e sem luz. Este tipo de
existencialismo tem sua contrapartida na psicanálise, uma doutrina que despe e
marca como irreal o princípio consciente e soberano da pessoa, considerando
como "real" a dimensão irreacional, inconsciente, coletiva e noturna
do ser humano: nesta base, cada faculdade superior é vista como derivada e
dependenteIsso também ocorre no plano social e cultural, onde o Marxismo se esforça
para retratar como uma mera "superestrutura" tudo aquilo que não pode
ser contado como processos sociais e econômicos. Estamos, obviamente, na mesma
linha de pensamento quando o existencialismo proclama a primazia da
"existência" sobre o "ser", em vez de reconhecer que a
existência adquire um significado apenas quando ela é inspirada por algo além
de si mesma. Assim, há um paralelo exato e visível entre essas correntes
intelectuais revolucionárias e movimentos socio-políticos, pois o que estamos
tratando é a manifestação, no domínio individual, daquilo que no domínio social
e histórico manifesta-se como uma mudança subversiva do poder para as massas, a
substituição do superior pelo inferior e a remoação de qualquer princípio de
soberania que não se orgine "de baixo". O "realismo"
existencialista e psicoanalítico, juntamente com tendências semelhantes, aponta
para uma imagem humana que reflete tais relações no individual; tal imagem
aparece como multilada, distorcida e subversiva. Assim, podemos considerá-la
como resultado de uma cogenialiadde quando muitos intelectuais de tendências
semelhantes simpatizam com essas correntes sociais de esquerda, mesmo quando os
líderes políticos dessas correntes não possuem os mesmos sentimentos por eles.
No
entanto, há uma segunda possibilidade: pode-se conceber uma visão realística e
uma luta contra o espírito burguês, o individualismo e o falso idealismo que é
mais radical do que a luta travada contra eles pela esquerda, e ainda orientada
para cima, não para baixo. Como já disse no capítulo anterior, essa
possibilidade diferente depende de uma retomada dos valores heróicos e
aristocráticos quando são assumidos com naturalidade e clareza, sem retórica ou
pomposidade: em retrospecto, aspectos típicos exemplificados pelo mundo romano
e germânico-romano. É possível manter uma distância de tudo o que tem apenas um
caráter especialmente subjetivista humano; sentir desprezo pelo conformismo
burguês e seu moralismo e egoísmo mesquinho; para encarnar o estilo de uma
atividade impessoal; preferir o que é essencial e real em um sentido mais
elevado, livre das armadilhas do sentimentalismo e da superestrutura
pseudo-intelectual - e ainda, tudo isso deve ser sentido permanecendo de pé,
sentindo a presença na vida daquilo que o leva além da vida, tirando daí as
normas precisas da ação e do comportamento.
Tudo
o que é antiburguês, nesse sentido, não converge para o mundo comunista; pelo
contrário, é a premissa para o surgimento de novos homens e líderes, capazes de
erguer verdadeiras barreiras contra a subversão global, em correspondência com
o estabelecimento de um novo clima, que disporá de suas próprias expressões
únicas, mesmo em termos de cultura e civilização.
Por isso, é
imprescindível reconhecer claramente a oposição entre as duas possibilidades ou
as direções da postura antiburguesa mencionadas acima. Isto é especialmente
verdadeiro na Itália. No passado, o fascismo adotou uma postura antiburguesa e,
como parte da renovação a qual pressupunha inaugurar, desejou o advento de um novo
homem, que deveria romper com o estilo burguês de pensar, sentir e agir.
Infelizmente, foi um dos casos em que o fascismo nunca passou de seus próprios
slogans; esses elementos no fascismo que, apesar de tudo, permaneceram
burgueses ou se tornaram burgueses por contágio constituiu um dos seus pontos
fracos. Na medida em que o presente está em causa, com raras exceções, o
Italiano comunista médio é nada além de um burguês que vai as ruas (o próprio
Lenin disse que um proletário, deixado a si mesmo, tende a torna-se um
burguês), assim como um falso cristão e um membro do Partido Democrata Cristão
representam nada mais do que a burguesia do templo. Mesmo aqueles que se dizem
monarquistas só pode conceber um rei burguês. O pior mal para a Itália é a
burguesia: o burguês-sacerdote, o burguês de trabalho, o burguês
"nobre", o intelectual burguês. Este tipo é inconsistente, uma
substância sem forma, na qual não existe qualquer "acima" e
"abaixo". A palavra de ordem ou grito de guerra deveria ser:
"limpar a lousa!" Somente seguindo esta máxima uma mudança para a
direção errada pode ser evitada.
Depois de mencionar
os intelectuais e realismo, ainda é necessário introduzir um ponto. Sugeri que
o flerte de alguns intelectuais com o comunismo é paradoxal, uma vez que o
comunismo despreza a figura do intelectual, a quem considera como um membro da
odiada burguesia. Aliás, uma atitude semelhante pode ser compartilhada mesmo
por aqueles que estão na frente oposta ao comunismo. Na verdade, é possível se
opor a qualquer valorização exagerada da cultura e da intelectualidade,
considerando o que constituem no mundo contemporâneo. Cultuar eles, definir
seus representantes como um estrato social mais elevado, quase uma aristocracia
- "aristocracia do pensamento", que acredita ser a verdadeira,
legitimamente substituindo as formas anteriores da elite e da nobreza, é um
preconceito característico da era burguesa em sua esfera humanista ou liberal.
A verdade é que esta cultura e o intelectualismo são nada mais que os produtos
da dissociação e neutralização dentro de uma ordem mais ampla das coisas. Como
isso não passou despercebido, o anti-intelectualismo tem sido quase uma reação
biológica, desempenhando um papel relevante nos últimos tempos: infelizmente,
tem prosseguido em direções falsas ou problemáticas.
Não vou, no
entanto, me debruçar sobre este último ponto, como já discutimos isso em outro
contexto, ao lidar com o erro do anti-racionalismo. Aqui só quero salientar
que, se desejamos superar a "cultura" burguesa, há um terceiro ponto
de referência possível além de ambos intelectualismo e anti-intelectualismo:
uma visão de mundo (em alemão - Weltanschauung). A visão de mundo é baseada não
em livros, mas em uma forma interna e uma sensibilidade dotada de um caráter
inato, ao invés de adquirido. É essencialmente uma disposição e uma atitude, em
vez de uma cultura ou de uma teoria - uma disposição e uma atitude que não
apenas dizem respeito ao domínio mental, mas também afetam o domínio dos
sentimentos e da vontade, forjam o caráter da pessoa, e se manifestam em
reações com a mesma certeza instintiva, dando provas de um sentido certo da
vida. Normalmente, uma visão de mundo, ao invés de ser uma questão individual,
procede de uma tradição e é o efeito biológico das forças que moldaram um certo
tipo de civilização; ao mesmo tempo, uma placa para o sujeito [do ponto de
vista do sujeito], a visão de mundo se manifesta como uma espécie de
"pista interna" e uma estrutura existencial. Em todas as
civilizações, era uma "visão de mundo" e não uma "cultura"
que permeava os vários estratos da sociedade; onde a cultura e o pensamento
conceitual estavam presentes, eles nunca tiveram a primazia, pois sua função era
simples meios expressivos e órgãos em serviço da visão de mundo. Ninguém
acreditava que o "pensamento puro" revelaria a verdade e forneceria
um sentido para a vida: o papel do pensamento consistia em esclarecer o que já
se possuía e que já pre-existia como evidências e sentimento direto, antes de
qualquer especulação fosse formulada. Os produtos do pensamento tinham apenas
valor simbólico, atuando como indicadores. Assim, a expressão conceitual não
tinha um caráter privilegiado em relação as outras formas de expressão. Nas
civilizações precedentes o último consistia em imagens evocativas, símbolos e
mitos. Hoje as coisas funcionam de outra forma, considerando-se o crescimento e
a hipertrofia cerebral do homem ocidental. No entanto, é importante não confundir
o essencial pelo acessório, e que as relações acima referidas são reconhecidas
e retidas; em outras palavras, sempre que a "cultura" e
"intelectualismo" estão presentes, eles podem ter um papel apenas
instrumental, expressando alguma coisa de mais profundo e mais orgânica, ou
seja, uma visão de mundo. A visão de mundo pode encontrar expressão mais clara
em um homem sem educação formal do que em um escritor, assim como pode ser mais
fortemente representada em um soldado, um aristocrata, ou um agricultor que é
fiel à terra do que no intelectual burguês, o típico "o professor",
ou o jornalista.
Em relação a tudo
isso, a Itália está em desvantagem, pois todos aqueles com o poder na mídia, na
cultura acadêmica, em revistas críticas, e que assim, organizam, monopolizando,
sociedades reais quasi-maçonicas, são os piores tipos de intelectuais, que nada
sabem do significado da espiritualidade, da totalidade humana, ou do pensamento
que reflete princípios fortes.
"Cultura"
no sentido moderno deixa de ser um perigo apenas quando aqueles que lidam com
ela já possuiem uma visão de mundo. Só então será possível uma relação ativa em
direção a ela, pois, já terá uma forma interior que lhe permita discernir com
segurança o que pode ser assimilado e o que deve ser rejeitado, mais ou menos
como acontece em todos os processos diferenciados de assimilação orgânica.
Tudo isso é
bastante evidente, ainda que tenha sido mal interpretado sistematicamente pelo
pensamento liberal e individualista: uma das calamidades da "cultura livre"
disponibilizada a todos e exposta por esta ideologia é o fato de que, desta
forma, muitos que são incapazes de discriminação de acordo com o julgamento
apropriado, e que ainda não têm sua própria forma e visão de mundo, encontra-se
à mercê de influências similares. Esta situação deletéria, que é ostentada como
um triunfo e como progresso, procede de uma premissa de que é exatamente o
oposto da verdade: presume-se que, ao contrário dos homens que viviam nas
épocas "obscurantistas" do passado, o homem moderno é espiritualmente
maduro, e, portanto, capaz de julgar por si mesmo e de estar por si só (esta é
a mesma premissa da "democracia" moderna em suas polêmicas contra
qualquer princípio de autoridade). Mas isso é pura ilusão: nunca antes, como
nos tempos modernos, houve tal número de homens que são espiritualmente sem
forma, e, portanto, aberto a qualquer sugestão e intoxicação ideológica, de
modo a tornar-se dominado por correntes psíquicas (sem estar ciente disso) e de
manipulações pertencentes ao clima intelectual, político e social em que vivem.
Mas estas considerações nos levariam muito longe.
Minhas observações
sobre a "visão de mundo" complementam os aspectos do problema que
tenho lidado quando mencionei o novo realismo; elas especificam onde este
problema deve ser situado e resolvido, em um modo antiburguês - pois não há
nada pior do que uma reação meramente intelectual contra o intelectualismo. Se
o nevoeiro levantará, ficará claro que a "visão de mundo" deve ser o
fator de unificação ou divisão, demarcando barreiras intransponíveis
espiritualmente. Mesmo em um movimento político ela constitui o elemento
principal, porque só uma visão de mundo tem o poder de produzir um determinado
tipo humano e, portanto, transmitir um tom específico de uma determinada
comunidade.
Com o comunismo já houve situações em que algo começou
a chegar a tais profundidades. Muito corretamente, um político contemporâneo
falou de uma mudança interior e profunda que, por manifestar-se sob a forma de
uma obsessão, é produzido naqueles que realmente aderem ao comunismo; seu
pensamento e conduta são alterados por ele. Na minha opinião, é uma alteração
ou contaminação fundamental do ser humano: em tais casos, afeta o plano da
realidade existencial, o que não é o que acontece com aqueles que reagem de
posições burguesas ou intelectualistas. A possibilidade de uma ação revolucionária-conservadora
depende essencialmente da medida em que a idéia contrária, ou seja, a
tradicional, a aristocrática, a ideia anti-proletária, é capaz de atingir tais
níveis existenciais - assim dando a um novo realismo e permitindo a Tradição,
como uma visão de mundo, para dar forma a um tipo específico de homem
antiburguês como o núcleo de novas elites, que ultrapassa a crise de todos os
valores individualistas e irrealistas.
Julius Evola - Cavalcare la Tigre
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