quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Terceiro Sexo (por Julius Evola)

I

Não há dúvida de que o aumento da homossexualidade e o avanço do chamado "terceiro sexo" representam um fenômeno característico do nosso tempo, presente não só na Itália, mas também em outros lugares. 

No que diz respeito à homossexualidade ou, mais precisamente, a pederastia, devemos destacar, como um traço particular, que não se limita em absoluto, como é o caso da grande maioria, a certos meios das classes superiores, a classe artística, os estetas, os decadentes entusiastas por perversões e experiências fora da norma, mas é um fenômeno que também tem alcançado as "pessoas simples" e as classes subalternas, sendo preservado apenas a classe média, em certa medida. 

Aqui não é lugar para aprofundar a questão da homossexualidade enquanto tal. Já tivemos a oportunidade, em uma de nossas obras[1], de estudar sistematicamente todas as formas possíveis do eros, sem nos limitar a formas "normais" e ocupando-nos até mesmo com outras épocas e outras civilizações. No entanto, naquele livro, passamos praticamente em silêncio sobre a homossexualidade. Isso porque, partindo do próprio conceito de sexualidade, mesmo em seu sentido mais amplo e além de todo preconceito social, não é fácil esclarecer o fenômeno homossexual. Este encontra-se essencialmente no campo da "patologia" em um sentido mais amplo e objetivo, que não ser definido por oposição ao que seria "saudável" segundo as concepções comuns da moral burguesa. Iremos abordar o assunto de forma sucinta, distinguindo dois aspectos. O segundo nos levará ao nível sociológico e, de alguma forma, para as mesmas considerações do capítulo anterior.

Em nossa obra mencionada anteriormente partimos da ideia de que toda a sexualidade "normal" deriva de estados psicofísicos suscitados pela oposição, como dois polos magnéticos, de dois princípios, do masculino e do feminino. Dizemos masculino e feminino em absoluto, compreendendo com isso dois princípios de ordem metafísica, anteriores e superiores ao plano biológico, princípios que podem estar presentes em variados graus entre os homens e entre as mulheres. Com efeito, em verdade, as mulheres e os homens "absolutos" existem tão pouco quanto o triangulo abstrato da geometria pura. Existem, ao contrário, seres nos quais é predominante a qualidade homem (os "homens") ou a qualidade mulher (as "mulheres"), sem que a outra qualidade por isso esteja completamente ausente. A lei fundamental da atração sexual, lei já percebida por Platão e Schopenhauer, depois exatamente formulada por Weininger, é que a atração sexual em suas formas mais típicas nasce do encontro de uma mulher e do homem de modo que a soma das partes da feminilidade e da masculinidade contida em cada resulte no total em um homem absoluto e uma mulher absoluta. Por exemplo, o homem que tivesse três quartos de homem e um quarto de mulher encontraria seu complemento sexual natural, aquele que se sentiria atraído de um modo irresistível e magnético, em uma mulher que tivesse três quartos de mulher e um quarto de homem: porque, então, a soma será precisamente formada por um homem absoluto e uma mulher absoluta, que se unem. Esta lei aplica-se para todo o erotismo intenso e profundo, elemental entre os sexos; não diz respeito as formas debilitadas, burguesas ou apenas "ideais" e sentimentais do amor e da sexualidade. 

Portanto, esta lei também nos permite descobrir os casos em que a homossexualidade é compreensível e "natural": são os casos em que o sexo, nos dois indivíduos que se encontram, não está muito diferenciado. Tomemos, por exemplo, um homem que não é mais que 55% "homem", e "mulher" no resto. Seu complemento natural será um ser "mulher" em 55% e um "homem" em 45%; mas tal ser, de fato, se diferencia pouco do homem, e uma vez que deve-se considerar não somente o sexo exterior, físico, mas também (se não especialmente) o sexo interior, este ser poderá ser apenas um "homem", o mesmo acontecerá no caso da mulher. 

É possível corresponder o conceito de "terceiro sexo" com as "sexualizações" pouco diferenciadas, ainda que se trate apenas, como vemos, de casos-limites. Assim é esclarecido a origem e a base das relações entre pederastas ou entre lésbicas como fenômenos "naturais" que procedem de uma conformação inata particular e da mesma lei que, com uma conformação diferente, conduz as relações normais entre os sexos. Nestes casos, mas só nestes casos, estigmatizar a homossexualidade como uma "corrupção" não faz sentido (porque, para seres como esses que falamos, as relações chamadas "naturais" não seriam naturais, mas contrárias a sua natureza); crer na eficácia de qualquer profilaxia ou terapia igualmente não tem sentido, rejeita-se pensar (e esta negação é razoável) que com medidas deste tipo seja possível modificar o que na biologia chama-se biotipo, a constituição psicofísica congênita. Se for preciso fazer um julgamento moral diante do estado que correspondem estes casos-limites, é especialmente sobre a pederastia que deve ser censurável, porque aqui um dos dois companheiros - o homem enquanto "pessoa" - é degradado, usado sexualmente como uma mulher. Não é o mesmo caso das lésbicas; se é verdade, assim como diziam os Antigos, que tota mulier sexus, isto é, se a sexualidade é o fundamento essencial da natureza feminina, uma relação entre duas mulheres não parece tão degradante. Desde que não se trate aqui da caricatura grotesca de uma relação heterossexual normal, mas de duas mulheres igualmente femininas, sem que uma delas, masculinizada e degenerada, desempenhe  o papel de homem em relação a sua companheira. 

Se esta estrutura geral não explica todos os casos de homossexualidade, isto é devido ao fato de que uma grande parte deles se enquadram em uma categoria diferente, em uma categoria de formas anormais em um sentido específico, determinadas por fatores extrínsecos, contra os quais os juízos devem ser diferentes. Se temos que dar uma visão geral do fenômeno tal como ele se apresenta na história e em outros povos, devemos considerar uma outra ordem de considerações. Queremos dizer que não mais trata-se de fenômenos explicáveis pela lei de atração sexual suscitada por uma forma qualquer de polaridade do princípio masculino e feminino (tomado em si mesmos, abstraindo sua dosagem variável entre os homens e as mulheres vivas). Por exemplo, a pederastia do mundo clássico representa um fenômeno à parte. Sabemos que Platão procurou relacioná-lo com o fator estético. Mas, neste caso, é evidente que não se pode falar mais de uma atração erótica em sentido estrito. Trata-se, com efeito, do caso em que a faculdade genérica de êxtase e embriaguez que desperta-se geralmente, devido à polaridade dos sexos, frente a um ser de sexo diferente, consegue ser acelerada por outros objetos que simplesmente servem de apoio ou de ocasião a esta faculdade.  Ao mesmo tempo Platão falou do eros como uma forma de "entusiasmo divino", de mania, próxima a outras formas que não tem nada a ver com o sexo, e que separa-se sempre do plano corpóreo, para não dizer carnal. Estabelece então uma progressão onde o encantamento e o eros despertados por um efebo representam apenas o grau mais baixo - o encantamento e o eros são suscitados em outros graus pela beleza espiritual - antes de chegar à ideia de beleza pura, abstrata e supra-terrestre. Até que ponto o tal "amor platônico" homossexual (que, ao seu nível mais baixo, não tendo uma mulher por objeto, seria mais "puro", não podendo ter, obviamente, finalidades genésicas) justificou verdadeiramente a prática efetiva da pederastia antiga, é outra questão. No caso da romanidade na decadência, certamente não há dúvidas.

A teoria de Platão teve certos equivalentes em certos meios islâmicos. Mas seria difícil relacionar com a pederastia comum. Por exemplo, entre os turcos, no exército otomano, chegava a um ponto em que a recusa do soldado em atender os desejos de um superior era tido como insubordinação (ver o caso relatado pelo coronel Lawrence). Por outro lado, neste caso, parece ter atuado, por vezes, um outro fator, alheio à sexualidade em sentido próprio; em uma confissão que nos foi relatada, tratava-se (na Turquia) da embriaguez suscitada no pederasta ativo de um "sentimento de potência". Mas há algo pouco claro aqui, visto o número de maneiras em que uma libido dominandi pode ser exercida e satisfeita em relações normais com mulheres. A pederastia no Japão nos põe um problema semelhante.

Em geral, todos esses fenômenos não se explicam como casos-limites da lei, indicada mais acima, da complementariedade sexual, porque não ocorre a condição de um sexo pouco diferenciado entre os dois parceiros. Em uma relação pederasta, um dos dois indivíduos pode ser fortemente viril, por exemplo (isto é, com uma elevada percentagem de qualidade "homem"); é o oposto de um relacionamento entre dois representantes do "terceiro sexo" como uma forma intermediária híbrida.

O fenômeno observado acima do desvio do eros que possibilita o despertar fora das condições normais da atração sexual (a bipolaridade dos sexos, com o magnetismo relacionado) e, em certo sentido também, os fenômenos de "deslocalização" do eros, sua transferência para um objeto diferente (fenômeno amplamente verificado pela psicanálise), podem, assim, serem considerados como uma explicação adicional da homossexualidade. Mas é preciso acrescentar a isto outra ordem de consideração. 




                                                                          II

Temos considerado a constituição dos indivíduos com relação ao sexo (sua "sexualização", o grau de diferenciação de sua qualidade homem ou mulher) como algo pré-formado e estável. No entanto, deve-se introduzir o caso em que, ao contrário, determinadas alterações tornam-se possíveis sob o efeito de processos regressivos, favorecidos eventualmente pelas condições gerais do meio, da sociedade e da civilização.

A título de premissa, é importante ter uma ideia mais precisa do sexo, nos seguintes termos. O fato de que só excepcionalmente se é cem por cento homem ou mulher e que em cada indivíduo subsistem resíduos de outro sexo está relacionado com outro fato, bem conhecido na biologia, que o embrião, inicialmente, é sexualmente indiferenciado, apresentando na origem as características de ambos sexos.  É um processo posterior (ao que parece, começa a partir do quinto ou sexto mês da gestação) que produz a "sexualização": logo, as características de um sexo prevalecerá e desenvolverá mais e mais, e aquelas do outro sexo se atrofiará ou passará para um estado latente (no domínio puramente somático, se tem como resíduos do outro sexo os mamilos no homem e o clitóris na mulher). Assim, quando o desenvolvimento estiver concluído, o sexo de um indivíduo masculino ou feminino deve ser considerado como o efeito de uma força predominante que imprime sua própria marca, enquanto que neutraliza e exclui as possibilidades originalmente coexistentes do outro sexo, especialmente no domínio corporal e fisiológico (no domínio psíquico, a margem de oscilação pode ser muito maior). 

Desta forma, é admissível pensar que este poder dominante, do qual depende a sexualização, seja enfraquecido pela regressão. Portanto, assim como na política, com o resultado do enfraquecimento da sociedade de toda sua autoridade central, as forças inferiores, até então travadas, podem libertar-se e reaparecer, também podemos verificar no indivíduo uma emergência dos caracteres latentes do outro sexo e, consequentemente, uma tendência bissexual. Nos encontramos, assim, novamente, diante da condição do "terceiro sexo", e é evidente que um terreno particularmente favorável ao fenômeno homossexual está presente. A condição é um decaimento interno, uma debilitação da "forma interior" ou, melhor, do poder que dá forma e que não se manifesta apenas na sexualidade, mas também no caráter, na personalidade, ao fato de ter, como regra, uma "face precisa".

Portanto, é possível compreender por que o desenvolvimento da homossexualidade entre as camadas populares e, eventualmente, sob formas endêmicas, é um sinal dos tempos, um fenômeno que se encaixa logicamente no conjunto dos fenômenos que faz com que o mundo moderno seja apresentado como um mundo regressivo. De tal forma encaminhamo-nos para as considerações formuladas no capítulo anterior.

Em uma sociedade igualitária e democratizada (em um sentido amplo), em uma sociedade em que não existe nem mais castas, nem classes funcionais orgânicas, nem Ordens; em uma sociedade em que a "cultura" tem algo de nivelado, extrínseco, utilitário, e em que a tradição deixou de ser uma força formadora e viva; em uma sociedade em que o pindárico "Seja você mesmo" tornou-se uma frase desprovida de sentido; em uma sociedade em que possuir um caráter é tido como algo luxuoso que só um tolo poderia permitir-se, enquanto que a debilidade interior é a norma; em uma sociedade que, em suma, tem confundido aquilo que pode estar acima das diferenças de raças, de povo e de nação com o que efetivamente está abaixo de tudo isso e que tem, portanto, um caráter informal e híbrido - em tal sociedade atuam forças que, em última análise, não poderiam deixar de ter incidência sobre a própria constituição dos indivíduos, atacando tudo que é típico e diferenciado, mesmo no domínio psicofísico. 

 A "democracia" não é um simples estado político e social; é um clima geral que conduz à consequências regressivas sobre o plano existencial. No domínio particular do sexos,  pode ser favorável, sem dúvidas, ao decaimento interno, este enfraquecimento do poder interior sexualizador que, como dissemos, é a condição da formação e da propagação do "terceiro sexo" e, com ele, de vários casos de homossexualidade, que os costumes atuais nos apresenta de uma forma que não pode deixar de nos chocar (2). Por outro lado, tem-se como consequência a banalização e a barbarização visível das relações sexuais normais entre os jovens das gerações recentes (causado por uma baixa tensão , devido à diminuição da polaridade). Incluso alguns fenômenos estranhos que, ao que parece, eram muito raros em outros tempos, a mudança do sexo no plano físico - homens que se tornam somaticamente mulheres, ou vice-versa - somos levados a considerá-los segundo o mesmo modelo e pelas mesmas causas: é como se as potencialidades do outro sexo - contidas em cada um - tivessem adquirido, no clima geral presente, uma possibilidade excepcional de recorrência e ativação, devido ao enfraquecimento da força central que, também biologicamente, define o "tipo", até chegar a deslocar e alterar o sexo do nascimento.

Em tudo o que podemos dizer de forma convincente até aqui, devemos apenas registrar um sinal dos tempos e reconhecer a completa inutilidade de todas as medidas repressivas de base social, moralista e conformista. Não é possível segurar a areia que escorre por entre os dedos, qualquer que seja o esforço que você fizer. Seria necessário voltar ao plano das causas primeiras, do qual todo o resto, em diferentes domínios, incluindo os fenômenos aqui considerados, são apenas consequências e atuar neste plano, produzir ali uma mudança essencial. Mas isso significa que o começo de tudo deveria ser a superação da civilização e das sociedades atuais, a restauração de um tipo de organização social diferenciada, orgânica, bem articulada graças à intervenção de uma força central viva e formadora. No entanto, uma perspectiva deste gênero parece cada vez mais uma pura utopia, pois, hoje, é no sentido exatamente oposto pra onde conduz o "progresso", em todos os domínios. Aqueles que interiormente não pertencem e não querem pertencer a este mundo, resta apenas a constatação das relações gerais de causa e efeito que escapam a loucura de nossos contemporâneos e a contemplação tranquila de todas as excrescências que, seguindo uma lógica bastante reconhecível, florescem no solo de um mundo em plena decomposição.

(1) Metafísica del sexo, Pequeña Bibliothêque Payot, París, 1976.

(2) Isto está de acordo com o fato de que hoje, o aumento das lésbicas é praticamente insignificante em relação aos pederastas; de fato, como Aristóteles já havia reconhecido, é eminentemente "homem" o portador do princípio em que repousa a "forma".

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