Voltando ao tema que nos ocupa, sobre
a importância do feminino como símbolo do "pilar da emancipação", e
sua exclusão posterior do núcleo ideológico do paradigma moderno, se
observarmos as antigas tradições espirituais pode-se notar que geralmente se
tem associado ao masculino o ativo e o exterior, o aspecto exotérico de uma
cultura, enquanto que o feminino está associado ao passivo, o interior, o
oculto, aquilo que não é mostrado explicitamente à luz - a alma, por exemplo,
está sempre relacionada com o feminino -, e assim, o feminino está relacionado
não tanto com o polo exotérico, mas com a dimensão esotérica - interior - da
tradição.
Nós já discutimos em outros momentos
sobre o conceito tradicional dos opostos, não como inimigos, que parecem apenas
aparentemente, mas como complementares que deverá conduzir a um novo equilíbrio
e ordem que os transcende. A superação de ambos produz em uma síntese criativa,
que muitas tradições representavam basicamente sob duas imagens:
- O "mito do andrógino '- assim,
por exemplo, em Platão e em toda a tradição hermética ocidental (sob a forma de
Rebis).
- O Hierogamos - em tradições
cabalísticas, como foi recentemente exposto por Moshe Idel e muitas vezes
presente na literatura mística ocidental. É a partir deste modelo de Eros
platônico e Hierogamos, como forma de ultrapassar manifestação individual, que
a cultura do amor cortês medieval se desenvolveu.
Às vezes, ambos os mitos tornaram-se
complementares e referiam-se a momentos diferentes da manifestação, assim, por
exemplo, na tradição platônica, o mito do 'andrógino primordial' foi adicionado
como um complemento reconstitutivo do mito do Eros como força de união dos
opostos.
Se considerarmos por um momento o
modelo de representação da Árvore Sefirótica, veremos que os pilares exteriores
representam os polos masculinos e femininos, enquanto que o Pilar Central
representa a (re)-união dos dois opostos em um equilíbrio perfeito, que é
imediatamente associado com a ideia mítica do andrógino que estamos
analisando.
Para mostrar como esta reunificação
das potências humanas tomava a forma mítica da androginia e até que ponto o
masculino e o feminino eram compreendidos como fatores complementares e não
como opostos, tomaremos um exemplo da Cabala Hebraica, uma tradição considerada
como o paradigma do machismo patriarcal mais indesejável para o pensamento
profano e moderno.
"Todos possuem necessariamente aspectos masculinos e femininos. Isto é particularmente o caso de tzaddiq [o 'justo']. (...) O aspecto masculino significa o que sempre emana. (...) Mas também há um aspecto feminino, ou seja, aquele que recebe e atrai o influxo dos mundos superiores para os mundos inferiores". (Heshel de Apta, 'Ohev Yisra'el')
A referência ao 'justo' é
particularmente significativa, uma vez que enfatiza como aquele que se realiza
espiritualmente aperfeiçoa esta complementaridade entre os aspectos masculino e
feminino - que tudo o que existe necessariamente possui - o que nos leva para a
reconstrução mítica do andrógino primordial como dizíamos. O "justo" realiza em si esta
verdade primordial que simboliza o mito do andrógino, esse detalhe é importante
como mostraremos no fim do artigo. Importa notar que esta ideia da presença
inseparável do masculino e do feminino na totalidade do que existe já está
contida na representação da Árvore cabalística, pois todas as séfiras, ou
esferas, são femininas em relação aquelas que lhe são superiores - pois recebem
delas - e masculina em relação aquelas que lhe são inferiores - pois emanam até
elas.
O falso retorno do feminino na
modernidade
No entanto, a modernidade não conjugou
estes opostos para desenvolver um equilíbrio entre eles. Devido a algumas
razões que analisaremos mais adiante, para o paradigma moderno, o polo que
denominamos como o 'de controle' tem sido a tal ponto hegemônico no
desenvolvimento da civilização europeia ocidental que tem expulsado por completo
aqueles modos de ser e entender o mundo - assim como toda disciplina de
conhecimento - que poderiam estar associadas com o polo feminino ou
'emancipador'. Este fenômeno de exclusão da diferença está, como veremos a
seguir, na base da extrema rigidez do paradigma moderno e na consequente perda
de flexibilidade e diversidade que o acompanha desde sua origem.
Antecipando em quase dois séculos a
revisão cultural que aquilo que o feminismo moderno tem pretendido nas últimas
décadas, Goethe advertiu esta expulsão do feminino do quadro mental e
conceitual ocidental e alegou que recuperou o que se chamou de o 'eterno
feminino'. A este 'eterno feminino' haviam estado secularmente associados as
disciplinas humanistas e liberais como as arte, a poesia e outras; disciplinas
que, como facilmente nota-se, foram deslocadas do núcleo do novo paradigma
dominante e que perdeu muito de seu prestígio na nova ciência, mais semelhante
ao paradigma moderno, racionalista, rígido e excludente.
Desde então, o retorno do feminino
visto por Goethe não ocorreu, e o ocidente continuou a abandonar-se ao
racionalismo mais extremo e o desenvolvimento mais titânico, que representa -
para a modernidade - a essência da masculinidade.
Curiosamente, as primeiras críticas à
hegemonia da masculinidade e do racionalismo, que anunciou de alguma forma o
começo da desintegração do paradigma atual, vieram da psicanálise, que, ao seu
modo, marcadamente anti-tradicional, ao menos voltou sua atenção para a alma
humana, desprezada por séculos pelo paradigma racionalista e cientificista. Não
queremos dizer com isso que a psicanálise desempenhou um papel saudável ou
benéfico para a civilização ocidental, pois não acreditamos que sim, mas que
deixou claro as rachaduras no paradigma moderno e colocou a atenção sobre
algumas de suas principais falhas. Foi precisamente Jung que recuperou a antiga
proposta de Goethe, reivindicando o papel do feminino em mitos e símbolos
ocidentais, fazendo amplo uso de algumas expressões que já mencionamos antes,
como o "eterno feminino" ou "andrógino".
Nós podemos mostrar graficamente as
diferentes situações do feminino no contexto dos dois paradigmas - tradicional
e o moderno - pela ilustração a seguir.
No paradigma tradicional fica claro
que se estabelece uma diferença entre os polos masculino e feminino - na
retórica moderna seriam "gêneros" - que aparentemente aparecem como
opostos. Para representar graficamente tal relação entre o masculino-feminino
temos nos inspirados mais uma vez a Árvore Sefirótica e seus dois pilares ou
colunas, qualificados tradicionalmente como masculino e feminino. Entretanto,
seria um erro interpretar essa diferença como uma superioridade de um polo
sobre o outro, porque é claro que se quer indicar a complementariedade.
No fundo, esta divisão, corresponde
aquela que já citamos entre a Razão e o Intelecto, sendo o polo racional, o
masculino - aquele que requer o desenvolvimento lógico e reflexivo - e o polo
intelectual, o feminino - que é considerado intuitivo e direto. O polo feminino
seria o âmbito típico de poetas e artistas, mas também dos profetas e xamãs, e
o masculino, da ciência e da filosofia racionalista.
De modo que, estritamente falando, o
polo feminino deve ser um pouco mais elevado que o masculino, pois a faculdade
intelectual, como já dissemos aqui, é superior, por natureza, à faculdade
racional, uma vez que é mais principial: está mais próxima dos princípios
imutáveis e não depende de acidentes.
Justificar tudo o que disse acima
seria muito longo, especialmente por causa da imensa propaganda existente direcionada para nos convencer do contrário, então nós preferimos deixar para
outra ocasião. Só diremos, como exemplo histórico para ilustrar estas
reflexões, que, na Grécia antiga, o profetismo era uma coisa quase exclusiva as
mulheres, porém estas - sibilas, sacerdotisas, hetairas - não eram tomadas como
inferiores, ao contrário, eram respeitadas por toda a sociedade e em particular
por os homens, a tal ponto que o próprio Sócrates diz ter sido iniciado nos
Mistérios por uma mulher, Diotima, a qual ele tratava como mestra, com
veneração e respeito. Algo inédito e surpreendente para a história moderna, na qual se acusa de doença mental o fenômeno místico, onde se encontra na literatura
acadêmica que muitas místicas e visionárias medievais - e algumas delas santas,
incluindo até mesmo Doutoras da Igreja - descritas como neuróticas. Claro que é
necessário nunca ter lido uma página escrita por estas mulheres nem saber sobre
sua vida - assombrosamente ativas - para dizer tais coisas. Gostaríamos de
saber se talvez esta não é uma negação a todo custo do nível supra-racional,
um desprezo absoluto pelo "feminino".
Além do mais, o modo em que a
civilização clássica grega aceitava a religião, o misterioso e, em geral, o
não-racional (em vez de irracional) - incluindo certas tradições xamânicas que
sobreviveram entre eles por muitos séculos - como parte do cotidiano, refuta
claramente a imagem hiper-racionalista que o ocidente tem tentado construir
desta parte da história em relação com outras civilizações daquela época.
Mais uma vez, o núcleo ideológico - e supersticioso - que caracteriza a
modernidade não se vê afetado pelo fato de que a realidade desmente seus falsos
mitos repetidos ou que seus argumentos sejam tão escandalosamente falsos.
E, finalmente, ver nessa diferença uma
injustiça flagrante a ser reparada supõe algo muito próprio do pensamento
homogeneizador e impositivo que funciona na modernidade: negar a realidade de
que estas diferenças existem. Acaso os homens e as mulheres não são diferentes?
Acaso diferente é sinônimo de inferior? E, além do mais, são diferentes por natureza,
o que parece ser um detalhe especialmente odioso para modernidade, obcecada
desde décadas em mostrar que tais diferenças são relacionadas ao ambiente... É
o homem moderno que vê "opressão" e "injustiça" e que deve
libertar-se de todas as partes, embora, talvez a maior injustiça -
especialmente quando se referem as sociedades passadas que não compreendemos
nada - esteja no seu olho e em seu olhar do que na própria realidade.
Dito isto, e retornando à ilustração
anterior, na qual o modo pelo qual o feminino é representado nos paradigmas
moderno e tradicional, com o esquecimento e desprezo do poder intelectual pelo
paradigma racionalista, o polo feminino foi completamente subordinado ao polo
masculino, viu-se privado de qualquer direito de existir - representava o
anormal e devia ser abolido - e assim foi banido para as profundezas do
subconsciente, o único lugar onde poderia sobreviver. Neste ponto, é muito
interessante as reflexões de Patrick Harpur, sobre como aquilo que é 'aprisionado' e
reprimido no subconsciente volta à consciência de forma cada vez mais
monstruosa e problemática, criando, entre outras coisas, doenças mentais e
desequilíbrio social. É para isto que Freud e a psicanálise dirigiram sua
atenção, como observamos anteriormente. Mas, esta realidade dolorosa, óbvia,
não importa de modo algum para a elite intelectualista do paradigma hegemônico
da modernidade, nem as doenças de seus habitantes nem os desastres da sociedade
que movem as ciências sociais modernas - a (pseudo)-psicologia moderna por
exemplo - faz com que abandonem o tão querido paradigma cientificista atual.
Um subconsciente-feminino que, aliás,
perdeu o polo superior - espiritual - que deve guiar a vida humana, não demorou
em voltar-se para arte moderna, já desde o romantismo - mas ainda mais nas
vanguardas do século XX - em plena
decomposição. O que deixa bem claro que em verdade não há lugar para a arte
verdadeira na racionalidade exclusivista, o que quer dizer que o paradigma
moderno expulsou a arte para fora de si para poder impor o seu modelo de vida e
sociedade, radicalmente pragmático e extremamente vulgar. Isto pode surpreender
alguns, mas ficará claro em mostrar que a única 'arte' - se assim pode ser chamada,
o que não cremos - que permite o paradigma racionalista ocidental é
precisamente aquela que brota da parte mais inferior, passional e irracional da
alma humana. Uma 'anti-arte' que, em vez de apontar para algo superior,
claramente conduz ao infernal. Com efeito, a arte é uma expressão privilegiada
da alma humana e, quando esta alma está doente ou é diretamente negada, que arte
pode surgir?
Em última análise, no novo paradigma
racionalista, cientificista e mecanicista, caracterizado antes de tudo por des-animar
- extrair a alma - o mundo, o feminino foi relegado para o subconsciente -
identificado com o emocional, o enfermo, o irracional, bruxaria, magia, etc...
- e o masculino identificou-se de forma exclusiva com a racionalidade
técnico-prática, materialista. Assim, as trevas da razão veio a obscurecer a
luz do intelecto.
Em conclusão, acreditamos que é
impossível uma crítica profunda à racionalidade prática impositiva e excludente
que tem sido praticada no ocidente ao longo dos últimos séculos se se carece de
uma perspectiva tradicional que situe a razão e o intelecto em seus devidos
lugares. Sem essa perspectiva, todas críticas serão parciais ao paradigma
ocidental, e nos encontraremos novamente diante do paradoxo que exige o
'cumprimento do programa ilustrado', quando é este mesmo programa - social e
epistemológico - a origem do problema. E esperamos que nunca chegue a ser
cumprido, pois o desastre seria de proporções cósmicas.
O feminismo moderno visto desde a
Tradição
Disto isto, pode parecer que o
feminismo moderno venha a recuperar esta feminilidade perdida a que nos
referimos, secularmente associado com o 'pilar da emancipação' e testemunho
inegável de outros modos de ser e compreender o mundo, mas a verdade é que este
está longe de ser o caso, pois o feminismo moderno é verdadeiramente a antítese
do que tradicionalmente simboliza o feminino, opondo-se radicalmente e visando
substituir permanentemente.
Embora seja verdade que durante
décadas se reivindica um retorno do feminino à sociedade, com a repetida
acusação de promover valores exclusivamente associados à masculinidade -
racionalismo, competitividade, etc -, o retorno que tomou lugar é meramente
exterior e não envolve a menor mudança no modo de entender e construir a ordem
social. Ao contrário: o que trouxe
consigo, esta espécie de 'tendência cultural', que é o feminismo moderno, não
tem sido uma mudança no modo de compreender o mundo nem uma transformação
revolucionária do mesmo, como o discurso de poder quer nos fazer querer acreditar, mas
apenas uma maior visibilidade das mulheres na sociedade, totalmente exterior e,
portanto, sem importância para todos efeitos: as mulheres ainda estão
completamente imersas em uma sociedade que continua a ser a mesma que era antes
de sua especial 'libertação feminista', imersa em um paradigma ideológico e
social radicalmente machista e racionalista.
Assim, a maior presença exterior do
feminino não se constitui como uma alternativa - nem como uma dissidência - em
relação à ordem do paradigma predominante, proveniente do 'pilar do controle',
mas, ao contrário, representa um passo em direção ao aprofundamento nele mesmo
e em sua hegemonia no ordenamento da sociedade, destruindo as últimas
resistências ao mesmo, a saber: a família e a figura da maternidade.
Não é por acaso que a maternidade
tornou-se a 'besta negra' do feminismo moderno mais radical, contra a qual se
dirigem as mais duras injúrias progressistas, o que confirma outra de nossas
teses: o ódio da modernidade à natureza. É a clássica
oposição entre a natureza e a cultura - expressa também como irracional vs
racional -, onde a natureza deverá ser completamente abolida para criar uma
realidade exclusivamente construida, isto é, técnica, abolindo mais uma vez o
emocional e o interior em prol do pragmatismo.
Como podemos ver, mais uma vez, a
modernidade não se trata de integrar a diferença - o 'pilar da emancipação' que
está associado com o natural e o irracional - mas ao contrário, de eliminá-lo.
Assim resulta que, desvendando a retórica progressista que cativa a sociedade,
a mulher não é um 'sujeito a libertar-se', mas sim um 'objeto a ser destruído'
por parte do feminismo como projeto político e da revolução feminina como fato
social. Acrescentamos que, o que se esconde por trás da promessa de libertar o
homem e a mulher de todas suas 'correntes' é apenas isto: negar e roubar sua
natureza essencial; toda essência, toda qualidade, deve ser destruída para que,
por fim, a nova ordem seja imposta, o novo mundo que a modernidade tanto
anseia. Finalmente chega-se a imersão na matéria indiferenciada e
desqualificada para realização do "reino da quantidade", nas palavras
de Guénon.
O que dizemos é confirmado quando comprova-se que o feminismo moderno não se trata da contribuição da mulher para a
civilização moderna dos valores que o feminino tradicionalmente incorporaram
nas sociedades pré-modernas, trata-se exatamente do oposto: esses valores
tradicionais, associados ao 'pilar da emancipação', simbolizada pela mulher,
família, o respeito às tradições dos antepassados e o mundo rural, são vistos
pelo feminismo moderno não como valores a serem recuperados, mas como
desvalores a serem combatidos e apagados, vestígios de um passado que deve
ser completamente esquecido - mas uma vez nos deparamos com a 'cultura do palimpsesto'
-. O feminismo moderno é apenas um passo nesta direção, da supressão das raízes
e desenraizamento do homem moderno, o que significa a construção de uma nova
feminilidade ultra-moderna, cada vez mais próxima do 'pólo masculino' que
governa a sociedade e que tanto se tem criticado e se diz combater. A realidade
é que dessa forma não se combate em verdade o 'pilar do controle' mas, ao
contrário, serve a ele mesmo mediante a destruição de suas possíveis
alternativas.
Por esta razão, o feminismo nascido
depois da Segunda Guerra Mundial,
descaradamente anti-tradicional, não significa o retorno da visão
emancipatória e feminina da realidade, mas envolve, ao contrário, sua anulação
final com base na derradeira destruição das poucas resistências que poderiam
derrubar o domínio absoluto do 'pilar do controle' monolítico e seus ideais
humanistas.
Feminismo e machismo, dois lados da
mesma modernidade anti-tradicional.
Algumas considerações finais se
impõem. Em primeiro lugar, se reconhecermos que o feminino e a emancipação foram expulsos do núcleo paradigmático Ocidental e da construção de sua
identidade a partir de sua origem, o retorno do feminino, se é real e não
meramente uma aparência revolucionária - uma máscara de poder - como tem sido
apresentada pelos diversos feminismos, deve implicar o fim - ou pelo menos uma
certa alternativa - da mesma mentalidade moderna lhe marginalizou.
E, uma vez que a modernidade - como
paradigma de conhecimento - exclui o polo feminino da emancipação por
definição, o retorno dos valores e realidades que isso implica nunca poderá
ocorrer dentro da própria modernidade. Portanto, aqueles "feminismos"
que defendem e fortalecem a modernidade - que reivindicam uma maior
conformidade com o programa ilustrado - só podem ser julgados como cúmplices da
ordem vigente, cúmplices da destruição daquilo que verdadeiramente sempre
simbolizou o feminino.
Por outro lado, verificamos muitas
vezes que o conceito de feminismo opõe-se a seu conceito antagônico: o
machismo. Assim, é extremamente necessário notar o paradoxo de que o feminismo
moderno, na medida em que é precisamente moderno, não pode lutar contra o
machismo sistêmico que diz denunciar - o tão conhecido patriarcado - pois faz
parte indissoluvelmente da ordem social que lhe moldou e dele necessita para
existir.
O feminismo, com toda sua aparência de
oposição e reivindicação, não é mais que um passo no avanço do paradigma
machista hegemônico dos últimos séculos e que moldou a civilização atual. Um
paradigma em que a técnica, o estado e o capital têm prioridade sobre o
indivíduo, seja homem ou mulher. Esta é a terrível realidade de uma sociedade
que mistifica um modo de conhecimento - a técnico-ciência - que não está a
serviço dos seres humanos, mas de um poder cada vez mais distante e
desumanizado, e denunciar as desigualdades de gênero antes de denunciar esta
verdade - que se encontra na base daquelas - é demagogia ou mascarar a verdade.
Assim, portanto, o feminismo não é uma
luta contra o machismo - contra o qual, ainda se quisesse, não poderia
combater, pois são filhos de um mesmo pai: a modernidade anti-tradicional -,
mas antes de tudo uma luta contra o gênero, enquanto divisão socialmente
apropriada dos papéis masculinos e femininos.
É evidente que o fato de que exista
diferenças de 'gênero', assim como seu reconhecimento explícito, não implica
por si só que um gênero submeta-se a outro. Mas, esta evidência lógica não
significa nada para o feminismo moderno e sua propaganda moderna de desprezo de
todo o passado, nem altera em nada seu programa político de redesenho e
desconstrução da sociedade. Esta é a verdadeira agenda oculta do feminismo
enquanto agente político de divisão e dominação social: a abolição de toda
diferença entre o homem e a mulher. Por isso o feminismo jamais afirmou ou
reivindicou os valores tradicionais da feminidade - aqueles que chamam de
'cúmplices do patriarcado' - mas antes pretende redefinir a feminidade, dissolvendo-a
e destruindo tudo o que possa ser feminino. Aqui, seu caráter anti-tradicional
é claramente demonstrado.
Subjacente a este propósito está o
caráter que já definimos como fundamental na modernidade desde seu início: o
ódio pela diferença; o qual é inevitavelmente seguido por seu corolário
positivo: o igualitarismo. Esta abolição dos gêneros não conduz a igualdade
alguma mas, como vimos no desenrolar destas páginas, a um estado de coisas
muito consistente com o projeto social da modernidade: o igualitarismo a todo
custo e a homogeneidade da sociedade.
Ou seja, na linguagem que estamos
empregando para definir este paradigma, o que se busca não é outra coisa senão
a ausência da diversidade, pois, como já vimos, a diversidade - assim como a
liberdade verdadeira, não a libertação revolucionária - é vista como uma ameaça
potencial à ordem vigente do 'pilar do controle'. A modernidade considera a
igualdade como a 'ausência de diferença' - a conhecida doutrina de 'todos somos
iguais' - e, especialmente, tendo em conta a prioridade que o exterior e a
aparência possuem nas mentalidades modernas mais radicais, a 'ausência de
diferenças exteriores'.
*
*
*
Ainda há mais. Este
igualitarismo esconde atrás de si uma realidade ainda mais inquietante. Tem
sido dito muitas vezes que a modernidade impõe um igualitarismo por baixo e há
evidências irrefutáveis disso, como visto nas tendências que gradualmente
ganham força na sociedade de hoje, como a desconstrução de gêneros, os novos
tipos de mulher e de (pseudo)-feminidade - marcados por uma exagerada
androgenização, mais uma vez anti-tradicional, incluindo o estético - ou na
moda conhecida como unisex, por exemplo, sem necessidade de falar nas novas
sexualidades e modelos de relacionamento que todo tempo estão a inventar. É em direção a esta
"ausência de diferença" para onde aponta as conquistas feministas do
último século.
O que está por trás dessas atitudes
não é apenas uma campanha de destruição da masculinidade, aqui há um ódio
de igual forma ao masculino e feminino. Portanto, para o feminismo, assim como
para todo o projeto globalista, não se trata em combater a desigualdade, mas
destruir toda diferença, uma diferença que parece incomodar especialmente a
modernidade mais radical.
Não é surpreendente, portanto, que a
feminização e a desconstrução do homem - exterior e também de seu caráter -
tenha acontecido lado a lado uma extrema androginização da mulher. Tal
tendência, já denunciada no início do século XX, demonstra que o paradigma
machista-racionalista não mudou em nada e continua a ser hegemônico em todos
lugares, inclusive entre as mulheres, pois estas, em vez de afirmarem-se como o
que são - mulheres - tem imitado quase sempre o protótipo do sexo masculino
para sentirem-se aceitas na sociedade que dizem criticar, já desde os primeiros
coletivos feministas - o que denota algo patológico e não um desejo de
emancipação; na realidade invejam a situação social dos homens - e mostram-se
cada vez mais na sociedade naquilo que antes era competência exclusiva dos
homens. E, sobretudo, imitando o polo masculino em seu pior, isto é, naquelas
atitudes mais brutas e grosseiras, como é evidente para qualquer pessoa que
está livre de preconceitos. Para realizar tudo isso, a ideologia feminista,
que, como toda ideologia moderna é "contra alguma coisa" - define-se
por seu inimigo - vem aplicando a tática de se vitimizar, problematizar e
inferiorizar as mulheres até o ponto em que odeiam quem são.
Sendo o feminismo moderno mais
um subproduto, e dos mais grotescos, da pós-modernidade anti-tradicional,
aquela que celebra destruir a si mesma, compartilha plenamente com ela seu
característico ódio a si mesmo, a seu passado e a tudo o que é; e sua última
missão, não é acabar com o 'patriarcado' moderno - representado sobretudo pelo
par Estado-Mercado - mas redefinir a noção de sujeito, desconstruir as pessoas desde sua sexualidade e redesenhar a sociedade... em última análise, dissolver.
O feminismo é, portanto, uma força
dissolvente mais forte; um verdadeiro niilismo, dos muitos que atualmente
desmembram nossa sociedade.
O andrógino moderno como inversão do
andrógino primordial.
Chegamos a conclusão de nossa análise.
Como podemos ver, estamos aqui diante da inversão exata do mito tradicional do
andrógino primordial. Se o ideal dos alquimistas e dos hermetistas cristãos era
essencialmente a integração em sua personalidade de suas duas polaridades -
entendidas como complementariedades -, o que é, antes de tudo, um processo
interior de assunção da própria natureza, não excludente mas inclusivo, em que
pouco poderia importar a aparência externa, o ideal do "novo
andrógino" é o nivelamento por baixo entre o homem e a mulher, uma espécie
de dessexualização e queda na indiferenciação da matéria primordial. Tal
indiferenciação primordial é sobretudo uma imagem da ausência de qualidades, o
que é um sinal evidente do 'reino da quantidade' como já nos avisou
magistralmente René Guénon.
Assim, a convergência dos gêneros masculino e feminino em um universo
unisex, é um caso análogo ao que representa o ideal da proletarização universal
que anunciavam e sonhavam os utopismos do século XIX, contrário a ideia
tradicional da ordem social baseada em castas. O proletário não supera as
castas por cima - o que seria o ideal do ativarna hindu - mas sim por baixo,
anunciando a desqualificação completa do homem - que é, de fato, o avarna,
literalmente "sem cor", isto é, sem qualidade. Ambos modelos de
igualitarismos revolucionários envolvem a desqualificação do sujeito e,
portanto, um rebaixamento de sua dignidade ontológica, um sujeito que,
coisificado, passa a ser uma peça do sistema, sem qualidades que lhe defina ou
lhe diferencie do resto de outras peças, e, sendo assim, perfeitamente intercambiável por qualquer outra peça, em uma homogeneidade que é uma imagem
dessa indiferenciação própria da Matéria Prima que dizíamos e que reflete na
mesma sociedade a ideia da cadeia de montagem industrial. Tudo isso anuncia um
futuro de prevalência indiscutível dos sem castas: a 'ditadura do
proletariado', uma massa de pessoas sem passado, sem raízes, sem terra,
controlados por um sistema de produção completamente exteriorizado e alheio;
como pode-se defender semelhante projeto social?
Se o andrógino tradicional era antes
de tudo uma realidade interior e implicava uma superação dos gêneros - para o
qual é necessário aceitar e assumir previamente-, com vistas de dar lugar a uma
ordem e equilíbrio que transcenderia por cima, pelo alto - tal e como citamos o
modelo do ativarna, o homem que supera toda as castas-, agora, o novo
equilíbrio unisex passa a negar a diferença, e até mesmo a existência, de tais
realidades masculinas e femininas, igualando por baixo, em sua parte inferior,
em um retorno à indiferenciação da matéria sem forma, isto é, sem qualidade. Se por um lado a androginia tradicional simboliza a integração da alma do sujeito, em um
interior harmônico e equilibrado, a perfeição da alma humana; a androginia
pós-moderna, por outro lado, é sua antítese terminal: representa a indiferenciação primordial
contida no caos primevo, uma descida ao inferior - o reino da matéria - e, como
tal, pode certamente ser descrita como infernal.
Mais um exemplo de como a modernidade
é a inversão infernal - inferior - da ordem tradicional ou normal.
Escrito por Ramés, no blog Agnosis (link)
Nenhum comentário:
Postar um comentário