segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Vitória dos Iconoclastas (Por Gilbert Durand)

«0 positivismo é a filosofia que, no mesmo movimento, suprime Deus e clericaliza todo o pensamento.» JEAN LACROIX La sociologie de Auguste Comte 

Pode parecer duplamente paradoxal querer tratar do «Ocidente iconoclasta». Não reserva a História cultural este epíteto à crise que sacudiu o Oriente bizantino no séc. VII? Como pode uma civilização que transborda de imagens, que inventou a fotografia, o cinema, os inúmeros meios de reprodução iconográfica, ser acusada de iconoclasmo? Existem, decerto, formas de iconoclasmo. 


Um, por defeito, rigorista, é o de Bizâncio que, a partir do séc. v, se manifesta com Santo Epifânio e irá reforçar-se sob a influência do legalismo judeu ou muçulmano e será mais uma exigência reformadora de «pureza» do símbolo contra o realismo demasiado antropomorfo do humanismo cristológico de São Germano de Constantinopla e, em seguida, de Teodoro Studitae. O outro, mais insidioso, é de certo modo, por excesso, inverso nas suas intenções aos dos pios concílios bizantinos. Ora, se o iconoclasmo do primeiro tipo foi um simples acidente na ortodoxia, vamos tentar mostrar que o iconoclasta do segundo tipo, por excesso, por evaporação do sentido, foi o traço constitutivo e incessantemente agravado da cultura ocidental. 

Numa primeira abordagem, o «co-nascimento» simbólico, definido triplamente como pensamento sempre indireto, como presença figurada da transcendência e como compreensão epifânica, surge nos antípodas da pedagogia do saber tal como o conhecimento foi instituído desde há dez séculos no Ocidente. Se, tal como O. Spengler, considerarmos, de modo plausível, o início da nossa civilização com a herança de Carlos Magno, apercebemo-nos que o Ocidente sempre opôs aos três critérios precedentes elementos pedagógicos violentamente antagónicos: à presença epifânica da transcendência as Igrejas irão opor dogmas e clericalismos; ao «pensamento indireto» os pragmatismos irão opor o pensamento direto, o «conceito» - quando não é o «preceito» - e, finalmente, face à imaginação compreensiva, «mestra do erro e da falsidade», a Ciência levantará longas sucessões de razões da explicação semiológica, assimilando aliás estas últimas às longas sucessões de «fatos» da explicação positivista. De certo modo, estes famosos «três estados» sucessivos do triunfo da explicação positivista são os três estados da extinção simbólica.

São estes «três estados» do iconoclasmo ocidental que teremos de percorrer brevemente. Todavia, estes «três estados» não têm a mesma evidência iconoclasta e, para passar do mais evidente ao menos evidente, vamos inverter no nosso estudo o curso da história, tentando, . para lá do iconoclasmo demasiado notório do cientismo, regressar às raízes mais profundas deste grande cisma do Ocidente relativamente à vocação tradicional do conhecimento humano. 

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A mais evidente depreciação dos símbolos que a história da nossa civilização nos apresenta é certamente a que se manifesta na corrente cientista saída do cartesianismo. É certo que, como escreve de forma excelente um cartesiano contemporâneo, isto não acontece porque Descartes recusa utilizar a noção do símbolo. Para o Descartes da III Meditação, o único símbolo é a consciência, ela própria «à imagem e à semelhança» de Deus. Continua, portanto, a ser exato pretender que foi com Descartes que o simbolismo vai perder o seu direito de cidadania em filosofia. Mesmo um epistemólogo de um não-cartesianismo tão decidido como Bachelard escreve ainda, nos nossos dias, que os eixos da ciência e do imaginário são inicialmente inversos e que o científico deve, antes de mais, lavar o objecto do seu saber, através de uma «psicanálise objectiva», de todas as pérfidas sequelas da imaginação «deformadora». Foi bem o «reino» do algoritmo matemático que Descartes instaurou e Pascal matemático, católico e místico não se enganou quando denunciou Descartes. O cartesianismo assegura o triunfo do «signo» sobre o símbolo. A imaginação, como aliás a sensação, é refutada por todos os cartesianos como a mestra do erro. É certo que, para Descartes, só o universo material é reduzido ao algoritmo matemático graças à famosa analogia funcional: o mundo físico é apenas forma e movimento, isto é, res extensa e, em seguida, qualquer figura geométrica é apenas equação algébrica.

Mas este método de redução às «evidências» analíticas pretende ser o método universal. Ele aplica-se precisamente, mesmo e em primeiro lugar em Descartes, no «eu penso», derradeiro «símbolo» do ser, é certo, mas um símbolo formidável, dado que o pensamento, logo o método - isto é, o método matemático - se torna o único símbolo do ser! O símbolo - cujo significante tem apenas a diafaneidade do signo - esbate-se pouco a pouco na pura semiologia, evapora-se, por assim dizer, metodicamente em signo. É por este meio que, com Malebranche e sobretudo Espinoza, o método redutor da geometria analítica será aplicado ao Ser absoluto, ao próprio Deus.

É certo que, com o séc. XVIII, se inicia uma reação contra o cartesianismo. Mas esta reação será apenas inspirada pelo empirismo escolástico de Leibniz e de Newton, pois veremos mais adiante que este empirismo é tão iconoclasta como o método cartesiano.

Todo o saber dos dois últimos séculos resumir-se-á a um método de análise e de medidas matemáticas marcado por uma preocupação de recenseamento e de observação no qual a ciência histórica encontrará a sua medida. Foi assim que se inaugurou a era da explicação cientista que, no séc. XIX, sob as pressões da história e da sua filosofia, se desvia para o positivismo.

Esta concepção «semiológica» do atual mundo será a concepção oficial das Universidades ocidentais e, em especial, da Universidade francesa, filha mais velha de Auguste Comte e neta de Descartes. Não só o mundo é possível de exploração científica, como só a exploração científica tem direito ao título desafeto de conhecimento. Durante dois séculos a imaginação é violentamente anatemizada. Brunschvicg considera-a ainda como <pecado contra o espírito>, enquanto Alain não consegue ver nela mais do que a infância confusa da consciência. Sarte só descobre no imaginário «nada», «objecto fantasma», «pobreza essencial». 

Na filosofia contemporânea realiza-se, sob o impulso cartesiano, uma dupla hemorragia do simbolismo: quer porque se reduz o cogito às «cogitações», e se obtém então o mundo da ciência em que o signo só é pensado como termo adequado de uma relação, quer porque se «quer tomar o ser interior à consciência», obtendo então fenomenologias viúvas de transcendência para as quais a coleção dos fenômenos deixa de se orientar para um pólo metafísico, deixando tanto de evocar o ontológico como de o invocar, só atingindo uma «verdade à distância, uma verdade reduzida». Em suma, podemos dizer que a denúncia das causas finais pelo cartesianismo e a redução do ser ao tecido das relações objectivas dela resultante liquidaram no significante tudo o que era sentido figurado, toda a recondução à profundidade vital do apelo ontológico.

Este iconoclasmo radical não se desenvolveu sem graves repercussões na imagem artística pintada ou esculpida. O papel cultural da imagem pintada é minimizado ao extremo num universo em que o poder pragmático do signo triunfa diariamente. Até Pascal afirma o seu desprezo pela pintura prefaciando assim o abandono social a que é votado o «artista» pelo consenso ocidental, mesmo através da revolta artística do romantismo. O artista, como o ícone, deixa de ter lugar numa sociedade que eliminou pouco a pouco a função essencial da imagem simbólica. Na sequência das vastas e ambiciosas alegorias do Renascimento, vemos também a arte dos séculos XVII e XVIII ser minimizada em puro «divertimento», em puro «ornamento». A própria imagem pintada, tanto na alegoria temperada de Le Sueur, na alegoria política de Lebrun e de David, como na «cena típica» do século XVIII, já não procura evocar. Desta recusa da evocação nasce o ornamentalismo acadêmico que, dos epígonos de Rafael a Femand Léger, passando por David e pelos epígonos de Ingres, reduz o papel do ícone ao da decoração. Mesmo nas suas revoltas românticas e impressionistas contra esta condição desvalorizada, a imagem e o seu artista nunca irão atingir, nos tempos modernos, o poder de significação plena que possuem nas sociedades iconófilas, na Bizâncio macedônia como na China dos Song. E na anarquia pululante e vingativa das imagens que subtilmente varre e submerge o século XX, o artista procura desesperadamente ancorar a sua evocação para lá do deserto cientista da nossa pedagogia cultural. 

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Se recuarmos alguns séculos para lá do cartesianismo, vislumbramos uma corrente ainda mais profunda de iconoclasmo, corrente que a mentalidade cartesiana repudiará muito menos do que se afirmou. Esta corrente é veiculada, do século XIII ao século XIX, pelo conceptualismo aristotélico ou, mais exatamente, pelo desvio ockhamista e averroísta deste último. A Idade Média ocidental retoma, por sua conta, a velha querela filosófica da Antiguidade clássica. O platonismo, tanto greco-latino, como alexandrino, é, muito ou pouco, uma filosofia da «cifra» da transcendência, isto é, implica uma simbólica. É certo que, a nosso ver, dez anos de racionalismo corrigiram os diálogos do discípulo de Sócrates onde já só lemos as premissas da dialéctica e da lógica de Aristóteles, ou mesmo do matematismo de Descartes. Mas a utilização sistemática do simbolismo mítico, ou mesmo do trocadilho etimológico, no autor do «Banquete» ou do «Timeu», basta para nos convencer que o grande problema platônico era bem o da recondução dos objetos sensíveis ao mundo das ideias, o da «reminiscência» que, longe de ser uma memória vulgar, é, pelo contrário, uma imaginação epifânica.

No ponto extremo da aurora medieval, é ainda uma doutrina semelhante que Jean Scot Érigene irá defender: tornando­-se Cristo o princípio desta reversio, inversa do creatio, através da qual se efectuará a divinização deificatio, de todas as coisas. Mas a solução adequada do problema platónico é, afinal, a gnose valentiniana que a propõe nesse longínquo pré--Ocidente dos primeiros séculos da era cristã. À questão que preocupa o platonismo - «Como conseguiu o Ser sem raiz e sem ligação chegar às coisas?», colocada pelo alexandrino Basilido - Valentino responde por meio de uma angelologia, uma doutrina dos anjos intermediários, os Eons que são os modelos eternos e perfeitos do mundo imperfeito porque separado, enquanto a reunião dos Eons constitui a Plenitude (o Pléroma).

Estes anjos, que se encontram noutras tradições orientais são, como mostrou Henry Corbin, o próprio critério de uma ontologia simbólica. São símbolos da própria função simbólica que é - como eles! - mediadora entre a transcendência do significado e o mundo manifesto dos signos concretos, encarnados, que se tornam símbolos através dela.

Ora, esta angelologia, constitutiva de uma doutrina do sentido transcendente veiculado pelo humilde símbolo, extrema consequência de um desenvolvimento histórico do platonismo, vai ser repelida em nome do «pensamento direto» pela crise dos universos que o conceptualismo aristotélico abre no Ocidente. Conceptualismo cada vez mais carregado de empirismo ao qual, no seu conjunto, o Ocidente será fiel durante cinco a dez séculos pelo menos (se dermos por encerrada a era peripatética em Descartes, sem ter em conta o conceptualismo kantiano ou o positivismo de Comte ... ). O aristotelismo medieval, nomeadamente o proveniente de Averróis, do qual se reclamaram Siger de Brabante e Ockham, é a apologia do «pensamento direto» contra todos os prestígios do pensamento indireto. O mundo da percepção, o sensível, deixa de ser o mundo da intercessão ontológica onde se epifaniza um mistério, como acontecia com Scot Érigene ou com São Boaventura. É um mundo material, o do lugar próprio, separado de um motor imóvel tão abstrato que não merece o nome de Deus. A «física» de Aristóteles, que a Cristandade irá adotar até Galileu, é a física de um mundo desafeiçoado, combinatória de qualidades sensíveis que só reconduzem ao sensível ou à ilusão ontológica que baptiza com o nome de ser a cópula que une um sujeito a um atributo. O que Descartes irá denunciar nesta física de primeira instância não é a sua positividade mas a sua precipitação.

É certo que, para o conceptualismo, a ideia possui bem uma realidade in re, na coisa sensível donde o intelecto vai extraí-la, mas ela só conduz a um conceito, a uma definição terra a terra que se proclama sentido próprio, deixando de reconduzir, de impulso meditativo em impulso meditativo como a ideia platônica, ao sentido transcendente supremo que está «para além do ser em dignidade e em poder». Sabemos com que facilidade este conceptualismo irá esbater-se no nominalismo de Ockham. Os comentadores dos tratados de física peripatética não estão de modo algum errados quando opõem os historiai' (as inquirições) aristotélicas, tão próximas no seu espírito da entidade «historiadora» do positivismo moderno, às mirabilia (os acontecimentos raros e maravilhosos) ou então às idiotes (acontecimentos singulares) de todas as tradições herméticas. Estas últimas procediam por relações «simpáticas», por homologias simbólicas.

Este deslizar para o mundo do realismo perceptivo, onde o expressionismo - ou mesmo o sensualismo - substitui a evocação simbólica, é dos mais visíveis na passagem da arte românica para a arte gótica. A primavera românica viu florescer uma iconografia simbólica herdada do Oriente, mas esta primavera foi mais breve relativamente aos três séculos de arte «ocidental», de arte dita gótica. A arte românica é uma arte «indireta», com muito de evocação simbólica,' em comparação com a arte gótica tão «direta», cujo prolongamento natural será a pintura flamejante e renascentista. O que transparece na encarnação escultural do símbolo românico é a glória de Deus e a sua vitória sobre-humana sobre a morte. O que a estatuária gótica mostra cada vez mais são os sofrimentos do homem-Deus.

Enquanto o estilo românico, ainda que com menos continuidade do que Bizâncio, conserva uma arte do ícone que assenta no princípio teofânico de uma angelologia, a arte gótica surge no seu processo como o próprio tipo do iconoclasmo por excesso: acentua a tal ponto o significante que desliza do ícone para a imagem muito naturalista que perde o seu sentido sagrado e se torna simples ornamento realista, simples «objecto de arte». Paradoxalmente, é menos o purismo austero de S. Bernardo que é iconoclasta do que o realismo estético dos góticos alimentados pela escolástica peripatética de S. Tomás. É certo que esta depreciação do «pensamento indireto» e da evocação angélica que lhe está intimamente ligada através do bom-senso terra-a-terra da filosofia aristotélica e do averroismo latino, não se realizará em um dia. Haverá as resistências mal dissimuladas: o florescimento da cortesia, do culto do amor platônico dos Fedeli d'Amore, o renascimento franciscano do simbolismo com São Boaventura. É necessário assinalar também que no realismo de certos artistas, por exemplo de Memling e mais tarde de Bosch, transparece uma mística oculta que transfigura a minúcia trivial da visão. Mas não é menos verdade que o regime de pensamento que o Ocidente «faustiano» do século XIII adota, ao fazer do aristotelismo a filosofia oficial da cristandade, é um regime que privilegia o «pensamento direto» em detrimento da imaginação simbólica e dos modos de pensamento indireto.

A partir do século XIII, as artes e a consciência deixam de ter a ambição de reconduzir a um sentido, preferindo «copiar a natureza», o conceptualismo gótico pretende ser um realismo que decalca as coisas tal como são. A imagem do mundo, quer seja pintada, esculpida ou pensada, desfigura-se e substitui o sentido da Beleza e a invocação ao Ser pelo maneirismo do bonito ou pelo expressionismo dos pavores da fealdade. Podemos escrever que se o cartesianismo e o cientismo dele resultante eram um iconoclasmo por defeito e desprezo generalizado da imagem, o iconoclasmo peripatético é o tipo de iconoclasmo por excesso: no símbolo, despreza o significado para só se ligar à epiderme do sentido, ao significante. Toda a arte, toda a imaginação, é colocada exclusivamente ao serviço do desejo fastuoso e conquistador da cristandade. É certo que a consciência do Ocidente tinha sido preparada, ainda mais profundamente, para este papel ornamentalista por uma corrente de iconoclasmo mais primitiva e mais fundamental que teremos de examinar agora.

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O racionalismo, aristotélico ou cartesiano, detém a imensa vantagem de se pretender uni versai por partilha individual do «bom-senso» ou do «senso comum». O mesmo não acontece com as imagens: elas estão submetidas a um acontecimento, a uma situação histórica ou existencial que lhes dá cor. É por isso que uma imagem simbólica precisa constantemente de ser revivida, um pouco como um trecho de música ou um herói de teatro precisam de um «intérprete». E o símbolo, como qualquer imagem, é ameaçado pelo regionalismo do significado e corre o risco de se transformar em cada instante naquilo a que R. Alleau chama ajuizadamente um «sintema», isto é, uma imagem que, antes de mais, tem por função um reconhecimento social, uma segregação convencional. Poderemos dizer que se trata aqui de um símbolo reduzido ao seu poder sociológico. Qualquer «convenção», ainda que animada das melhores intenções de «defesa simbólica» é fatalmente dogmática. No plano da recondução ontológica e da vocação pessoal, produz -se uma degenerescência que o pastor Bernard Morei distingue bastante bem: «A teologia latina traduziu a palavra grega "mistério" por "sacramento", mas a palavra latina não abrange toda a riqueza da palavra grega. Existe no mistério grego uma abertura ao céu um respeito do inefável, um realismo espiritual, uma força na exultação, que não exprimem a moderação lógica e concisão jurídica do sacramentalismo romano.» Estas virtudes de abertura sobre a transcendência no seio da livre imanência vão ser perdidas pela imagem simbólica. Tornando-se sintema, ela funcionaliza-se, teríamos quase vontade de dizer, relativamente aos clericalismos que vão defini-la, que se torna funcionária. A imagem simbólica, ao encarnar-se numa cultura e numa linguagem cultural corre o risco de esclerosar-se em dogma e em sintaxe. É neste ponto que a escrita ameaça o espírito quando a poé­ tica profética é suspeita e amordaçada. É verdade que um dos grandes paradoxos do símbolo é ser apenas expresso por uma «escrita» mais ou menos sintemática. Mas a inspiração simbólica pretende ser prevenção do espírito para lá da escrita sob pena de morte. Ora, toda a Igreja é funcionalmente dogmática, está institucionalmente ao lado da escrita. Uma Igreja, como corpo sociológico «Corta O mundo em dois: Os fiéis e os sacrílegos», especialmente a Igreja romana que, no momento culminante da sua história, agarrando com mão firme o gume dos «dois gládios», não poderá admitir a liberdade de inspiração da imaginação simbólica. Como já dissemos, a virtude essencial do símbolo é assegurar no seio do mistério pessoal a própria presença da transcendência. Esta pretensão surge num pensamento de igreja como uma porta aberta ao sacrilégio. Quer o legalismo religioso seja farisaico, sunita ou «romano», defronta-se sempre, fundamentalmente, com a afirmação que existe para cada individualidade espiritual uma «inteligência que age separadamente, o seu Espírito-Santo o seu Senhor pessoal, ligando-o ao Pleroma sem qualquer outra mediação». Por outras palavras, no processo simbólico puro, o Mediador, Anjo ou Espírito-Santo é pessoal, emana de certo modo do exame livre, ou melhor, da livre exultação, escapando assim a qualquer formulação dogmática imposta do exterior. A ligação da pessoa com o Absoluto ontológico, por intermédio do seu anjo, escamoteia mesmo a segregação sacramental da Igreja. Como no platonismo, especialmente no platonismo valentiniano, sob a capa da angelologia, existe relação pessoal com o Anjo do Conhecimento e da Revelação. 

Todo o simbolismo é, pois, uma espécie de gnose, isto é, um processo de mediação por meio de um conhecimento concreto e experimental. Como uma determinada gnose, o símbolo é um «conhecimento beatificante», um «conhecimento salvador» que, previamente, não tem necessidade de um intermediário social, isto é, sacramental e eclesiástico. Mas esta gnose, . porque concreta e experimental, terá sempre tendência a -figurar o anjo dentro dos mediadores pessoais do segundo grau: profetas, messias e, sobretudo, a mulher. Para a gnose propriamente dita, os «anjos supremos» são Sofia, Barbeló, Nossa Senhora do Espírito Santo, Helena, etc., cuja queda e salvação representam as próprias esperanças da via simbólica: a recondução do concreto ao seu sentido iluminador. Porque a Mulher, como os Anjos da teofania plotiniana, possui, ao contrário do homem, uma dupla natureza que é a dupla natureza do próprio «symbolon»: criadora de um sentido e ao mesmo tempo receptáculo concreto desse sentido. A feminidade é a única mediadora porque simultaneamente «passiva» e «ativa». Foi o que Platão já tinha expresso, é o que exprime tanto a figura judia da Schekinah como a figura muçulmana de Fátima. A Mulher é, pois, como o Anjo, o símbolo dos símbolos, tal como aparece na mariologia ortodoxa sob a figura da Teotokos, ou na liturgia das Igrejas cristãs, que se comparam facilmente, como intermediária suprema, como «Esposa».

Ora, é significativo que todo o misticismo do Ocidente venha banhar-se nestas fontes platónicas. Santo Agostinho nunca renegou completamente o neo-platonismo. E foi Scol Érigenes que introduziu no Ocidente, no século IX, os escritos de Dinis, o Areopágita. Bernard de Clairvaux, como o seu amigo Guillaume de Saint-Thierry, como Hildegardo de Bingen, são todos familiares da anamnese platónica. Mas face a esta transfusão do misticismo, a Igreja vigia funcionalmente com suspeição. 

Chegamos aqui ao factor mais importante do iconoclasmo ocidental, porque a atitude dogmática implica uma recusa categórica do ícone como abertura espiritual por uma sensibilidade, uma epifania de comunhão individual. Para as Igrejas orientais, o ícone é, na verdade, pintado segundo meios canonicamente fixados, e fixados, segundo parece, de modo mais rígido do que na iconografia ocidental. Mas não deixa de ser menos verdade que o culto dos ícones utiliza plenamente o duplo poder de recondução e de epifania sobrenatural do símbolo. Só a Igreja ortodoxa, aplicando plenamente as decisões do VII Concílio ecumênico, que prescreve a veneração dos ícones, dá totalmente à imagem o papel sacramental da «dupla dependência », o que implica que, por meio da imagem, do significante, as relações entre o significado e a consciência de adoração «não sejam puramente convencionais, mas radicalmente íntimas». Só então se revela o papel profundo do símbolo: ele é «confirmação» de um sentido a uma liberdade pessoal. É por isso que o símbolo não pode explicitar-se: a alquimia da transmutação; a transfiguração simbólica só pode, em última instância, efetuar-se na experiência de uma liberdade. E o poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor do que qualquer especulação filosófica: esta última obstina-se a ver na liberdade uma escolha objectiva, quando na experiência do símbolo demonstramos que a liberdade é criadora de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio do sujeito mais objectivo, do mais implicado no acontecimento concreto. Ela é o motor da simbólica. É a Asa do Anjo.

Henri Gouhier escreve algures que a Idade Média se extingue quando desaparecem os Anjos. Podemos acrescentar que uma espiritualidade concreta é encoberta quando os ícones perdem o seu destino e são substituídos pela alegoria. Ora, nas épocas de recuperação dogmática e de endurecimento doutrinal, no apogeu do poder papal sob Inocêncio III ou após o Concílio de Trento, a arte ocidental é essencialmente alegórica. A arte católica romana é uma arte ditada pela formulação conceptual de um dogma. Não reconduz a uma iluminação, «ilustra» simplesmente as verdades da Fé dogmaticamente definidas. Dizer que a catedral gótica é uma «bíblia de pedra» não implica de modo algum que em relação a ela seja tolerada qualquer interpretação livre, que a Igreja recusa para a própria Bíblia escrita. Esta expressão significa simplesmente que a escultura, o vitral, o fresco, são ilustrações da interpretação dogmática do Livro. Se a grande arte cristã se confunde com a arte bizantina e a arte românica (que são artes do ícone e do símbolo), a grande arte católica (arte que sustenta toda a sensibilidade estética do Ocidente) confunde-se com o «realismo » e o ornamentismo gótico como com o ornamentismo e o expressionismo barroco . O pintor do «triunfo da Igreja» é Rubens, não Andrey Rublev ou mesmo Rembrandt.

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Assim, na aurora do pensamento contemporâneo, no instante em que a Revolução francesa vai acabar de desarticular os suportes culturais da civilização do Ocidente, percebe-se que o iconoclasmo ocidental sai consideravelmente reforçado de seis séculos de «progresso da consciência». Porque, se o dogmatismo da escrita, o empirismo do pensamento direto e o cientismo semiológico são iconoclasmos divergentes, o seu efeito comum não deixa de se ir reforçando ao longo da história. De tal modo que é esta acumulação dos «três estados das nossas concepções principais» que A. Comte vai notar e que vai fundar o positivismo do século XIX. Porque o positivismo que Comte destaca do balanço da história ocidental do pensamento é simultaneamente dogmatismo «ditatorial» e «clerical », pensamento direto ao nível dos «factos» «reais» por oposição às «quimeras», e legalismo cientista. Para retomar uma expressão que Jean Lacroix aplica ao positivismo de Auguste Comte, poderíamos dizer que a «redução» progressiva do campo simbólico conduz, no despontar do século XIX, a uma concepção e a um papel excessivamente «acanhado» do simbolismo. Podemos justamente interrogar-nos se estes «três estados»» que são os estados do progresso da consciência não são três etapas da obnubilação e sobretudo da alienação do espírito. Dogmatismo «teológico», conceptualismo «metafísico» com os seus prolongamentos ackhamistas e, finalmente, semiologia «positivista», são apenas uma extinção progressiva do poder humano de relação com a transcendência, do poder de mediação natural do símbolo.

Do livro A Imaginacao Simbolica por Gilbert Durand

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