Se Hegel é o filósofo do Intelecto, Schopenhauer é o filósofo da Vontade. Ele toma como ponto de partida a Crítica da Razão Pura de Kant e afirma que a coisa-em-si que, para Kant era um noumenon incognoscível, é cognoscível diretamente no seu próprio ser como atividade volitiva. A Vontade é a coisa-em-si. Vontade de Schopenhauer não é a vontade psicológica individual, mas um princípio metafísico universal, não espacial e atemporal e sem causa, assim como a razão de Hegel, ao afirmar que não é meramente uma função individual. O Vontade, diz Schopenhauer, se manifesta no indivíduo como impulso, instinto e desejo. O Vontade, mais uma vez, é que aparece como consciência e corpo. Assim, o verdadeiro ser do homem é identificado com a Vontade.
Tudo no mundo, também, se torna uma expressão da Vontade. O mundo é a Vontade e Ideia e não tem existência material independente. A Vontade está acima da Ideia e é a única realidade. A Vontade é cega, inconsciente e a Ideia que é consciente é apenas uma aparência no intelecto. Não vemos nada em qualquer lugar, exceto a Vontade e o corpo, que é a expressão da Vontade. Diretamente da matéria inconsciente até o homem auto-consciente, a Vontade reina de forma suprema. Ela aparece inconsciente em algo e consciente em outro. É tudo luta, atividade e desejo que observamos em todos lugares. O desejo é a causa de todas as coisas. Assim como no Yogavasishtha, Schopenhauer diria que há o olho porque há o desejo de ver, há a audição porque há o desejo de ouvir. O corpo e as funções corporais são expressão da Vontade. Os órgãos digestivos são objetivações da fome, os pés, do desejo de movimento, o cérebro, do desejo de conhecimento. Não poderia haver corpo, ou mundo, sem a Vontade. O Anseio, o desejo, ou função, determina a natureza do ser, o tipo de organização que se torna o corpo da Vontade. A Vontade-de-viver é a raiz de todas as coisas. É a causa da luta, do sofrimento e dor. A Vontade é o grande mal que responde pela miséria de todos os seres.
O conceito da Vontade de Schopenhauer é fascinante. A Vontade é a Realidade e é um desejo cego. A Consciência ou inteligencia é o seu efeito fenomenal, manifestado em organismos superiores a fim de abrir o caminho para o trabalho da Vontade no mundo. Para Schopenhauer, a inteligencia não é a natureza essencial do ser. É apenas uma produção do cérebro criado pela Vontade para seus fins próprios. A consciência é uma aparência, enquanto que a Vontade da Realidade é a força imortal que nunca morre com a morte dos indivíduos, nunca perece através da mudança. Ela pode manifestar-se em uma forma mortal, como nos indivíduos, mas ela própria não pode deixar de existir. A Vontade é o ser imperecível.
A Vontade de Schopenhauer é mais parecido com a mula-prakriti do Vedanta, que é essencialmente uma atividade inconsciente, ao invés da Realidade, em que a natureza essencial é a consciência. A consciência individual que se expressa no intelecto é definida pela constituição de prakriti cuja representação é o intelecto. O intelecto é o meio através do qual a inteligencia se torna manifesta. Mas no Vedanta, prakriti não é a Realidade, e consciência não é a expressão de prakriti. A consciência é a essência da Realidade que está além de prakriti. Mas é verdade que a inteligencia intelectual do homem é controlada por seu Mestre inconsciente, prakriti, com seus modos primários Sattva, Rajas e Tamas. Talvez os psicoanalistas freudianos seriam amigáveis com Schopenhauer, pois ele seria uma ajuda na demonstração de suas teorias do determinismo psicológico, que a consciência é sempre determinada pela natureza do inconsciente, e que o livre-arbítrio é uma ilusão produzida pela falsa noção que a consciência é independente do inconsciente. O instinto, o desejo, o impulso é a raiz até mesmo da operação da razão. Aqui lembramos do que Bradley diz, que metafísica é a procura de má razões para aquilo que acreditamos por instinto e que, encontrar estas razões, novamente, não é mais que um instinto. Mas o desejo do conhecimento não é uma fé cega e irracional. O instinto que faz com que seja impossível para nós desistir da nobre iniciativa da metafísica é uma aspiração supra-racional que dá voz aos anseios do infinto dentro de nós. A Vontade cega de Schopenhauer não pode responder a esta verdade mais profunda em nós, nem pode, o inconsciente de Freud ir além de uma mera soma de impressões e impulsos criativos deixados em nós pelos nossos atos conscientes passados, desde eras. A consciência não é um sub-produto da Vontade inconsciente, da mesma forma que não é um produto do cérebro material.
A teoria de Schopenhauer de que a consciência é só um espelho da Vontade inconsciente é, como facilmente pode-se mostrar, uma suposição insustentável. Os argumentos contra o materialismo naturalmente nivelam-se contra essa visão de Schopenhauer. Como pode a consciência se manifestar por um princípio inconsciente, a menos que nele a consciência esteja escondida na própria inconsciência? Se a consciência está latente no inconsciente, então o próprio inconsciente deve ser dotado de consciência, embora podemos aceitar que esta consciência permanece não manifestada nela. Se a consciência é diferente da inconsciência, não se trata nem mesmo da manifestação do inconsciente, e nessa posição até mesmo a existência do inconsciente não pode ser conhecida por precisar de qualquer relação entre o consciente e o inconsciente. Podemos dizer, do mesmo modo, que a inconsciência não existe no fim das contas. Se, por outro lado, a consciência e a inconsciência são um só na essência, o inconsciente se torna iluminado pela consciência e sua essência se torna consciência. Mesmo nesta suposição, o inconsciente deixa de existir. Se é dito que o inconsciente sozinho existe, e que não há tal coisa como consciência, dizemos que, neste caso, ninguém saberia que há o inconsciente, não há garantia para a suposição que o inconsciente exista. Schopenhauer não pode nos transmitir nenhum sentido pedindo para que fujamos da Realidade ou para que superemos a Realidade. A Realidade não pode ser abandonada ou destruída, ou superada; é o Ser Supremo que cada um tem, que deve ser realizado no próprio ser. Como pode tal Realidade ser uma Vontade cega, um corpo de desejos que nos traz miséria? Em vez de nos pedir para elevarmos do fenômeno para Realidade, ele deseja que nos livremos da Realidade. Além disso, o real deve necessariamente ser o bem. Não é preciso nenhum argumento para provar isso, pois o Real, naturalmente, não é diferente do seu próprio ser. Temos que fugir de nós mesmos? Este ensinamento tem algum sentido?
A Vontade de Schopenhauer, o princípio do mal, tem de ser considerado como uma concepção cósmica da vontade individual que é caracterizada pelo mal do desejo. Um ser cósmico, por si só, não pode ser mau, pois nenhum valor ético ou moral, desejo, prazer ou dor pode ser atribuído ao que é supra-individual. O mal é significativo apenas ao individual, não a Realidade. Nós podemos aceitar a teoria da existência de um inconsciente cósmico primordial, como prakriti do Vedanta, e uma Ideia consciente aparecendo ali, como Ishvara ou Hiranyagarbha. Mas não podemos fazer com que essa Ideia consciente venha do inconsciente, pois a consciência não pode proceder da inconsciência. Nós temos que postular a Realidade cuja natureza essencial é a consciência e que se manifesta no inconsciente cósmico como uma Ideia consciente. Além disso, o mal tem de ser confinado à vontade psicológica individual que é como uma criança mimada para a Vontade cósmica, e não pode ser tomada como sendo cósmica. A própria Vontade é um princípio metafísico transcendente ao bem e o mal. O conselho de Schopenhauer que se deve libertar-se da vontade má equivale dizer nada mais do que se deve transcender a existência individual, e não pode significar que se deve evitar a própria Realidade, o que é uma impossibilidade. Ele cometeu um erro em objetificar a vontade individual no cosmos e chamando-a de Realidade metafísica. Mesmo se a vontade de todo mundo é má, isso não significa que a Vontade cósmica é má, pois mesmo todas vontades individuais juntas não podem fazer a Vontade cósmica. O argumento contra a suposição de Kant que as categorias de entendimento, objetivamente presente no sentido que estão em todos homens, que determinam a natureza dos objetos percebidos, se aplica também a crença de Schopenhauer que a vontade má tem uma existência metafísica. A Vontade não é a Realidade; é o poder executivo dinâmico da consciência, cosmicamente, bem como individualmente. No cosmos é livre; no indivíduo ela é vinculada e determinada.
A filosofia de Schopenhauer tem, entretanto, um grande valor se tomarmos sua aplicação à psicologia, e não como um sistema metafísico totalmente convincente, sem esquecer, ao mesmo tempo que, embora a psicologia lide com o comportamento e as funções da mente individual, ela é totalmente ignorante das aspirações transcendentais e dos sublimes esforços conscientes da razão espiritual mais elevada no homem. Nosso desejo, diz Schopenhauer, determina e está no fundo de nossos raciocínios. Não é porque raciocinamos que queremos; a razão é uma serva do desejo. O querer é considerado ser mestre até mesmo da razão. Não podemos influenciar as pessoas apelando sempre à sua compreensão; a compreensão é dominada pelos desejos volitivos. Temos que apelar para a Vontade que é a sede do desejo. Schopenhauer pensa que não há raciocínio e argumentação com as pessoas, - eles nunca podem ser persuadidos ou convencidos pelo apelo à razão, - eles funcionam quando as atividades de sua Vontade, seus desejos privados, seus interesses são apelados. Esquecemo-nos o que meramente entendemos; lembramo-nos o que desejamos. Razão ou entendimento é apenas um instrumento nas mãos dos desejos e dos medos da Vontade. A Vontade-de-viver, não o entendimento, é a fonte de toda ação. Schopenhauer concordaria com nós se afirmamos que toda a vida é uma luta por comida, vestuário, abrigo, sexo e proteção contra ataques externos. Só adicionaríamos, embora Schopenhauer parece nunca ter tido paciência para refletir sobre, que há um outro instinto mais elevado, uma aspiração secreta no homem que substitui todos os instintos inferiores, a aspiração pela Verdade, mesmo que isso seja raramente visto na maioria dos seres humanos.
A atração orgânica e força mecânica, para Schopenhauer, são ambas expressões da Vontade-de-viver. Essa Vontade tenta falsamente vencer a morte pela auto-reprodução. É por isso, diz Schopenhauer, que o desejo sexual é tão forte em todos os seres. É apenas uma outra fase da Vontade-de-viver, a afirmação de sua imortalidade, a sua tentativa de viver eternamente como um indivíduo da espécie. Os instintos de auto-preservação e auto-reprodução não são diferentes um do outro. O último é apenas o processo de assegurar a existência do primeiro no futuro. Portanto, há apenas um instinto, a turbulenta e inextinguível Vontade-de-viver. O intelecto não tem poder sobre esse instinto. Schopenhauer faz dos romances de amor apenas artifícios sutis da Vontade-de-viver, os instrumentos utilizados por ela, em suas operações escuras e selvagens para preservar-se. Ele conclui que o amor sexual traz sofrimento para o individual, pois seu objetivo não é o prazer ou bem do indivíduo, mas a continuação da espécie, na qual a natureza sagazmente encobre a razão do indivíduo e induz-lo a colocar fé na ilusão que é para seu próprio prazer. Assim, a tentativa da Vontade de se imortalizar termina em sua derrota, pois o que é imortalizado aqui não é o indivíduo, mas a espécie. O indivíduo foi inteligentemente enganado! O prazer não tem lugar algum no processo de preservação da espécie. Aqui, Schopenhauer, dá apenas uma mera interpretação psicológica da Vontade-de-viver se mostrando como Vontade-de-reproduzir. Suas implicações metafísicas serão descobertas no processo dialético de Hegel e na "satisfação" das "entidades reais" na filosofia de Whitehead. A neutralização da teses e a antítese na síntese, que é a maneira pela qual todas as coisas criam e recriam a si mesmas e que Hegel empregou para descrever o processo de uma maior evolução dos indivíduos para a realização da auto-consciência no Absoluto se aplica distorcidamente nos indivíduos relativos, ignorantes de qualquer propósito mais elevado, na reprodução das individualidades. Em Whitehead a dialética hegeliana continua de forma elaborada. As entidades reais de Whitehead fornecem os dados que são procurados para serem unificados na "satisfação" do desejo inato de criar. Se diz que "entidade real" aprecia o processo de criar-se de seus próprios dados, sentindo uma "satisfação" em sua auto-emergência. Uma "entidade real" torna-se "super-ejecta" quando emerge no mundo pre-existente de entidades reais. O significado implícito de tudo isso é que o impulso criador é imanente em todas as coisas que, em sua existência libertadora arquetípica mais elevada, torna-se uma marcha consciente para a realização do Absoluto, e em seu aspecto comprometedor mais inferior - nos indivíduos mortais - assume a forma de um uma busca cega para perpetuar a espécie. Aqui, o menor torna-se uma caricatura do mais elevado. Os filósofos gregos tinham evidentemente isso em suas mentes quando defendiam a extraordinária opinião que o amor sexual representa, no mundo dos sentidos, uma sombra do amor divino. A ética hindu, também, que respeita o casamento não como um contrato de amor, mas como um sacramento, como uma devota união de almas para o cumprimento de um propósito maior que o mundano. Não era qualquer elemento de paixão, mas uma rendição obediente à lei que determinava o significado do casamento na sociedade hindu antiga.Era um objetivo espiritual que orientava a união dos sexos. Uma nota, no entanto, que deve ser acrescentada, é que tudo isso é verdadeiro em sociedades metafisicamente e altamente avançadas, mas o individuo comum que, no mundo dos sentidos, se encontra perpetuamente de olhos vendados e estupidamente esquecido de toda espiritualidade na natureza das coisas, não só não consegue se beneficiar dessas implicações mais elevadas, mas dirige-se para cair num atoleiro de escravidão e sofrimento devido aos seus desejos. Como regra, deve-se considerar que não há nenhuma possibilidade de descobrir o espiritual em um mundo de objetos externos, enquanto se encontrar bloqueado dentro da casa-prisão de um mundo de ignorância, desejo e apego. Schopenhauer mostra o lado inferior empírico da imagem, e não se eleva a estas alturas que sabemos que o homem de hoje não possui capacidade de compreender. Para Schopenhauer, o casamento é a desilusão do amor, um truque pelo qual cada um se torna vítima da Vontade cega. A Vontade pode ser conquistada, diz Schopenhauer, pela superação da Vontade-de-reproduzir. A Vontade-de-reproduzir é considerada o maior dos males, pois procura perpetuar a miséria da existência individual. Schopenhauer diz que as paixões podem ser subjugadas pelo domínio do conhecimento da Vontade. A maioria dos nossos problemas deixariam de ser problemas se pudessem ser devidamente entendidos em relação às suas causas. O auto-controle fornece ao homem a maior proteção contra toda compulsão externa e ataque. A verdadeira grandeza está no auto-domínio, não na vitória sobre os mundos. A alegria interior é maior que o prazer exterior. Viver no ser é viver em paz. A Vontade má pode ser superada pela contemplação consciente sobre a verdade das coisas. Schopenhauer até mesmo recomenda a companhia dos sábios e relações com eles como auxiliares nessa contemplação. O conhecimento é o grande purificador do ser do homem. Quando o mundo é visto, não pelos sentidos, mas pelo conhecimento, o homem é liberado do mal e da escravidão da Vontade. O conhecimento nos leva à essência universal. Como essa profunda visão pode ser consistente com a noção de que a consciência, a inteligência ou o conhecimento é apenas um fenômeno, uma aparência da Vontade? Como pode o conhecimento dá ao homem a liberdade da Vontade se ele é apenas uma criatura projetada pela Vontade? Além disso, quando a Vontade é a Realidade e também cega e má, não pode haver tal coisa como a liberdade, pois o último objetivo da existência é o retorno a Realidade, e assim a experiência eterna que temos que aspirar deveria ser parte da inconsciência, do mal. Como pode o Nirvana da Vontade ou a realização da felicidade e paz ser possível, que Schopenhauer com tanta força defende, se a Vontade é a Realidade e a consciência seu efeito? Como poderia Schopenhauer dar-nos uma filosofia pura através de seu intelecto, se seu intelecto é apenas uma aparência da Vontade do mal? Não seria, então, sua própria filosofia um produto do desejo cego e do mal? Schopenhauer dá evidências de uma mente confusa que anseia pela liberdade universal e eterna pelo conhecimento perfeito, mas ao mesmo tempo condena esse desejo, denunciando a Realidade como uma Vontade cega e má. Sua renúncia e asceticismo que, segundo ele, pode destruir a Vontade e permitir que se alcance a liberdade mostra que a Vontade não é a Realidade, mas um apego a existência individual, e que a Realidade é liberdade, felicidade e paz. Um reconhecimento das limitações, sofrimentos desejos e males no mundo relativo deveria, sem dúvida, ser o início de qualquer filosofia verdadeira. Mas Schopenhauer compromete-se muitas vezes com declarações extremas que uma mente sóbria achará difícil apreciar plenamente. O limite é alcançado quando a própria Realidade é tomada como má. Tal teoria é o resultado de uma visão imperfeita e unilateral da vida, embora, às vezes, lado a lado com uma expressão de preconceito e sentimento pessoal, ele dá sugestões de um profundo conhecimento e uma sabedoria que não poderia deixar de ganhar admiração nos pensadores. Schopenhauer não é menos gênio que um Kant ou Hegel, mas seu gênio muitas vezes fica marcado por certas conclusões imaturas, com uma metafísica problemática e uma tentativa de dar o toque de plenitude naqulo que é apenas um lado da natureza das coisas. Há mal quando o desejo governa nosso reino, mas além de tudo isso está um objetivo que é um esplendor insuperável e bem-aventurança eterna, o qual somos obrigados a alcançar. No entanto, tem que se admitir, no final, que Schopenhauer fez um grande serviço à humanidade por ter chamado atenção para o fato de que a vida não é um mar de rosas, que há um lado sombrio e amargo na existência daqui, que há ignorância, decepção, sofrimento e dor, e que nenhuma filosofia que ignora essa obviedade pode ter esperanças de ser completa.
Swami Krishnananda em Studies in Comparative Philosophy
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