sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A Criação e a Sexualidade. A Espécie e a Personalidade (Por Nikolai Berdiaev)

A vida sexual neste mundo está viciada e corrompida nas suas raízes mais profundas. A sede de reunificação, de ser UM, que atormenta o homem preso ao desejo, é uma sede que não pode ser satisfeita. O ato sexual em particular, diferenciado, aparece como resultado de uma fragmentação original, é sinal do homem que perdeu sua unidade: isso é suficiente para tornar o ato irremediavelmente trágico e ineficaz. O ato sexual representa a tentativa extrema de duas correntes saídas de polos contrários se unificarem e absorverem uma na outra  sem sair delas mesmas. Chegam a se confundir? Certamente, não. Há algo que testemunha contra o ato sexual, e que carrega em si mesmo sua própria profanação, o germe da desintegração, esse transtorno licencioso que é exatamente o oposto do princípio da unidade. A união pelo ato sexual não é mais que ilusória, e esta ilusão tem que ser paga. Pelo fato dessa união ser temporária, estando na ordem natural das coisas, onde tudo é instantâneo e perecível, o sexo carrega o germe da morte. A ilusão fugaz do ato sexual é sempre acompanhada por uma reação, uma volta atrás, uma desunião. A desunião depois do ato sexual é mais completa que antes. Um tipo de isolamento doentio contamina o êxtase do abraço. O ato sexual, segundo seu significado místico, teria que ser eterno, e a união que ele encarna deveria aprofundar indefinidamente, as duas carnes deveriam se fundir em uma só, penetrar uma a outra até o extremo. Em vez disso, se cumpre o ato de uma união passageira, muito temporal e muito superficial. A reunião passageira se paga com uma divisão mais profunda. Dessa forma, a união no ato sexual se manifesta sempre  limitada. A união dos sexos em um sentido místico deveria significar a penetração de cada célula de uma criatura na célula de outra, a fusão total de uma carne na outra carne, de todo espírito no outro espírito. Em vez disso, se cumpre um ajuste superficial, incompleto, fragmentário, a carne permanece separada da outra carne, e o ato sexual diferenciado, isolado, guarda em si algo de defeituoso e mórbido. A união dos sexos teria que ser eterna, não deveria ser abreviada e nem ser acompanhada por uma volta atrás; deveria comunicar-se e expandir-se em toda a prisão onde a criatura está encerrada, teria que ser profunda e infinita. Em vez disso, o ato sexual na ordem da natureza, coloca o homem sob o infinito absurdo da corrente sexual que não conhece mitigação e prazos. Assim, a fonte de vida neste mundo está corrompida em sua base, e aparece como a fonte da escravidão humana. O ato sexual é interiormente contrário e oposto ao espírito do mundo: a vida natural do sexo é sempre trágica e inimiga da personalidade. Esta personalidade é apenas um brinquedo para o gênio da espécie, e a ironia do gênio da espécie acompanha o ato sexual. Sobre isso, tanto Schopenhauer como Darwin podem dar testemunho. O ato sexual é profundamente impessoal, é geral e idêntico, não só nos humanos como também para outros seres vivos. O ato sexual não somente não possui algo de pessoal ou individual, mas também não tem nada especificamente humano. A personalidade está sempre ali sob o poder de uma corrente geradora obscura, que relaciona o mundo humano com o mundo animal. A edificação mística de uma união pessoal em uma carne não pode ser alcançada e realizada em um elemento impessoal. E a tragédia sem solução do sexo é que a sede de uma união pessoal arrasta o homem para a corrente genética da natureza, levando-a, através do ato sexual, não a uma união pessoal, mas a uma concepção, a uma destruição da personalidade na geração, a um infinito maligno e não a uma eternidade.  Nesta vida sexual em busca do prazer e satisfação do desejo, o que prevalece não é uma edificação pessoal, mas sim o interesse da espécie, a continuação da espécie. O pessoal não pode realizar-se através do impessoal. O ato sexual corresponde sempre ao desmoronamento da personalidade e sua dissolução.



Não é, portanto, a imortalidade e a eternidade o que se espera a pessoa no ato sexual, mas sua dispersão em uma pluralidade de novas vidas por vir. O ato sexual afirma um infinito maligno, uma alternância infinita do nascimento e da morte. O que nasceu morre e engendra o que morrerá. O engendrar é sempre um sinal de fracasso da perfeição pessoal, da não adesão a eternidade. O que concebe e o que tem que nascer são princípios igualmente fugitivos. A concepção é de uma só vez o castigo do ato sexual e a redenção de seu pecado: e assim, o nascimento e a morte estão misteriosamente ligados na sexualidade. Pois a sexualidade não é somente a fonte de vida, mas também a fonte da morte. Se nasce e morre por ela. A corrupção e a decadência mortal entraram no mundo pelo caminho da sexualidade. Foi com ela que a personalidade começou a decrescer, a se desprender da eternidade. A sexualidade afunda o homem nessa categoria perecível da natureza na qual reina a alternância infinita de nascimento e morte. O que é mortal engendra e o que é mortal morre. A lei do karma e da evolução infinita da reincarnação que ensina a concepção religiosa da Índia é, na verdade, essa necessidade da morte e o nascimento, ligados ao pecado da sexualidade. A liberdade benfeitora do cristianismo substituiu as consequências obrigatórias da lei do karma. Há um antagonismo profundo entre a vida eterna e perfeita da personalidade e o nascimento de vidas mortais no tempo, entre a perspectiva da personalidade e a perspectiva da espécie. A espécie é a fonte da morte da personalidade, a fonte de vida geradora. Os gregos já sabiam que Hades e Dionísio eram apenas um só deus, sentiam a ligação mística entre a morte e a geração.  A isso se deve que no próprio ato sexual, na união sexual, se oculta uma tristeza mortal. Na vida geradora do sexo se dissimula o pressentimento da morte. O que dá a vida leva consigo a morte. A alegria da união sexual é sempre uma alegria envenenada. E este veneno mortal encerrado na vida sexual sempre foi percebido como um pecado. O ato sexual sempre envolve a tristeza das esperanças dissipadas da personalidade, a passagem do eterno ao temporal. Na união pessoal aqui embaixo sempre há algo que morre. O ato sexual se cumpre na corrente da espécie, fora da personalidade. O instinto sexual, apoderando-se do homem, submete a personalidade eterna à forças passageiras. A sua queda, sua dispersão em uma pluraridade maligna está inscrita antecipadamente na vida das espécies. Nada específico poderia levar a exaltação da pessoa, da eternidade perfeita. A corrente da espécie nasceu da queda e da desintegração do homem. A dissociação eterna do mundo caído e culpável tem como face oposta a reunião artificial dentro da espécie. A espécie humana é uma pseudo-humanidade, que testemunha a dissociação humana. Nela, a própria natureza do homem se encontra escravizada e sufocada. O gênio da espécie é o principal obstáculo para a revelação da humanidade, para a revelação da natureza criadora do homem.  A espécie é uma necessidade maligna, a fonte de escravização do homem e sua desintegração. O vínculo entre o homem e o espírito se transforma em um vínculo específico com a carne e o sangue. Os seres não estão mais unidos pela filiação da Virgem, do eterno feminino no Espírito, mas somente pela engendração, pelo ato sexual. O vínculo da espécie humana, o vínculo sexual, supõe este ato, que os homens se envergonham por ser impuro. As pessoa costumam esconder a fonte de seu vínculo e união com a espécie. A religião da espécie humana terminaria, então, por glorificar e deificar aquilo que os homem escondem e se envergonham. O vínculo da carne e do sangue é o vínculo pelo ato sexual, o vínculo forjado por ele. A grande e a imensa significação de Rosanov reside na sua imposição ao conhecimento religioso esta verdade e tudo que deriva dela.


A liberação da personalidade sobre o ato sexual é a liberação em respeito a espécie, a ruptura do vínculo da espécie em nome do vínculo pelo espírito, a saída do universo maligno do nascimento e morte. A espécie e a personalidade são profundamente antinomicas, seus princípios são mutuamente excludentes.  Tudo que é pessoal no homem é inimigo da sexualidade específica. Só na personalidade, a energia da sexualidade, pode chegar ao seu grau mais elevado; não existe uma personalidade forte sem essa energia, mas sua tendência não deve estar direcionada para a espécie, tem que se opor a queda em uma pluralidade maligna. A personalidade se conhece e se realiza fora do elemento da espécie. Não poderia vencer a morte e adquirir a eternidade no terreno do vínculo da espécie. É preciso nascer uma humanidade nova. A relação entre os pais e os filhos é biológica-zoológica. No que lhe diz respeito, o homem é aceitavelmente semelhante a uma galinha ou cão. Mas a relação dos pais com os filhos pode ser mística. É possível contrariar a ordem da natureza, trocar a espécie pelo espírito. Falo aqui de uma relação ativa entre as gerações e não uma obediência servil ao passado, que nada mais é que uma escravidão genética. O homem se sente culpado pela morte de seus pais e seus antepassados, deve reviver-los. Mas essa reavivação não pode ser feita a não ser mediante ao espírito, fora da espécie. A continuidade místico-ativa entre o homem e seus ancestrais transforma a relação de vínculo de espécie em vínculo espiritual, de vínculo mortal em vínculo imortal. No centro de sua concepção religiosa, Fedorov havia situado esta ideia de reavivamento de seus antepassados mortos. Neste reavivamento (não uma ressurreição) viu a essência do cristianismo. Mas as concepções de Fedorov são afetadas por uma divisão inexplicável. Por uma parte, torna-se corajosamente para frente, exorta o homem a atividade criadora e acredita que tem o pode em suas mãos de reviver os mortos mediante suas forças ativas. Mas, por outro lado, Fedorov segue sendo um conservador, e esta mesma atividade criadora, em vez de direciona-la para o futuro, para uma edificação nova, quer fazê-la servir para restaurar forças antigas. Fedorov é um revolucionário dentro da corrente da espécie, mas caí ainda mais dentro da corrente. No fundo, sua religião é uma religião da espécie. Reforça o vínculo que liga o ser com a espécie, da carne com o sangue, e não com o espírito. Portanto, para ele, os mortos tem que reviver pela espécie e não pelo espírito. E suas visões geniais sobre a espécie tem um sabor específico. Previu genialmente na Santíssima Trindade a forma de toda geração, mas em vez de ver ali somente uma geração essencialmente espiritual, parece não ter entendido vendo apenas a geração da espécie. Na vida da espéice, a morte é inevitável. Somente pelo espírito se pode vencer a morte, ressuscitar os mortos. O primeiro nascimento, na espécie, não é o nascimento autêntico do homem. Apenas o segundo nascimento, o nascimento no espírito, que falavam os místicos, que constituem para o homem o nascimento definitivo. Mas o caminho transitório da espécie teria que ser percorrido pela humanidade.

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