sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Encontro com Roman Ungern von Sternberg

Ferdinand Ossendowski, escreve sobre seu encontro com Ungern-Sternberg no seu livro "Bestas, Homens e Deuses (1922)"

Filhos de Cruzados e de Corsários

— Fale-me de você e de sua viagem — pediu. Contei-lhe tudo que me pareceu poder interessa-lo. Ele ouvia-me com muita atenção.

— Agora  quero  falar-lhe  a  meu  respeito,  assim você  saberá  quem  eu  sou.  O meu nome é circundado  de  tanto  ódio  e  terror  que  ninguém consegue mais isolar a verdade da mentira, e a história da lenda. Quem sabe, qualquer dia você vai querer  escrever  um  livro;  então  você recordará  sua  passagem  pela  Mongólia  e  sua estada na "yurta" do "general sanguinário". Fechou  os  olhos,  e  sem  deixar  de  fumar, começou  a  falar  nervosamente,  sem  completar as frases, como se o tempo fosse escasso.

—  A família  Ungern  von  Sternberg  é antiga; há, nas  suas  origens,  uma  mistura  de  alemães  e húngaros,  de  hunos  no  tempo  de  Átila.  Meus antepassados eram guerreiros e participaram de todas as guerras européias. Foram cruzados: um Ungern morreu perto das muralhas de Jerusalém, combatendo com a tropa de Ricardo Coração de Leão.  Durante  a  trágica  cruzada  das  crianças morreu  outro,  Raoul  Ungern,  que  tinha  apenas onze  anos.  Quando os mais valentes guerreiros do  país  foram  enviados  para  as  fronteiras orientais do império germânico para lutar contra os  eslavos,  no  século  XII,  meu  antepassado Arthur  achava-se  entre  eles;  ele  era  o  Barão Halsa  Ungern  Sternberg.  Os cavaleiros dessas comarcas  fronteiriças  formaram  a  ordem teutônica dos monges cavaleiros, e converteram ao  cristianismo,  pelo  ferro  e  pelo  fogo,  as populações  pagãs  de  lituanos,  estonianos, livônios e eslavos. Sempre houve um membro da minha família  na  ordem  dos  Cavaleiros teutônicos, desde sua fundação. Quando a ordem foi  desmantelada  no  Gruenewald,  derrotada pelas  tropas  polonesas  e  lituanas,  dois  barões Ungern  von  Sternberg  morreram  no  campo  de batalha.  Nossa família  sempre  teve  espírito bélico,  com  tendência  aos ascetismo  e  ao misticismo.
Entre os séculos XVI e XVII vários barões Ungern von  Sternberg  moravam  em  seus  castelos  na  Livônia  e na Estônia. Suas aventuras inspiraram muitos  contos  e  muitas  lendas.  Heinrich  von Sternberg, cuja apelido era "o Machado", era um cavaleiro  errante.  Seu  nome  e  sua lança  eram conhecidos  em  todos  os  torneios  da  França,  da Inglaterra, da Itália e da Espanha, e ele inspirava terror  a  todos  os  seus  adversários.  Morreu  em Cadiz quando a espada de um cavaleiro abriu-lhe o crânio. O Barão Raoul Ungern era um bandido cavaleiro que agia na região entre Riga e Reval. O  castelo  do  Barão  Pierre  Ungern  localizava-se na  ilha  de  Dago,  no  mar  Báltico,  e  daí  ele  saía, para  as  suas  investidas  de  corsário,  contra  os navios mercantes. No  começo  do  século  XVIII  o  Barão  Wilhelm Ungern  ficou  conhecido  pelo  pseudônimo  de "irmão de Satã" pelas suas práticas de alquimia. Meu avô era corsário no Oceano Índico, e exigia um  tributo  dos  navios  mercantes  ingleses. Durante muito tempo conseguiu fugir dos navios de  guerra  britânicos,  mas  foi  finalmente capturado  e  entregue  ao  cônsul  russo,  que  o mandou  para  a  Rússia.  Foi  condenado  ao desterro na Transbaikalia.  Eu também sou oficial da Marinha, mas durante a guerra nipo-russa tive que  abandonar  minha  profissão  e  agregar-me aos Cossacos do Zabaikal. Consagrei minha vida toda à guerra e ao estudo do budismo. Meu avô levara a doutrina budista da Índia: meu pai e eu aderimos a ela. Tentei fundar uma ordem militar budista na Transbaikalia para organizar uma luta implacável contra a depravação revolucionária.
Calou-se  por  um  momento,  enquanto  bebia várias xícaras de chá, forte e preto ao ponto de parecer café.
— Ah,  a  depravação  revolucionária!  Quem  se preocupa  com  ela,  fora  Bergson,  o  filósofo francês, e o sábio Tachi Lama no Tibete?
O  neto  do  corsário,  que  citava  teorias  e  obras científicas,  nomes  de  sábios  e  de  escritores,  a Bíblia e os livros budistas, continuou, misturando o idioma francês ao alemão, ao russo e ao inglês: — Nos livros budistas e nos antigos escritos cristãos  encontram-se  profecias  importantes  a respeito  da  época  na  qual  deverá  começar  a guerra  entre  os  espíritos maus  e  os  espíritos bons.  Então  chegará  a  praga  desconhecida  que dominará  o  mundo,  varrendo  toda  a  civilização, calcando  a  moral  e  destruindo  os  povos.  Sua arma  é  a  revolução.  Durante  toda  revolução,  a inteligência  criadora,  auxiliada  pela  experiência do passado, será substituída pela força jovem e brutal do destruidor. Por isso as paixões vis e os baixos instintos dominarão. O homem se afastará do divino e do espiritual. Durante a guerra ficou provado que a Humanidade deve procurar ideais sempre  mais  elevados:  mas  foi  justamente naquela  época  que  surgiu  a  praga  vaticinada pelo  Cristo,  pelo  apóstolo  São  João,  por  Buda, pelos  primeiros  mártires  cristãos,  Dante, Leonardo  da  Vinci,  Goethe  e  Dostoievsky.  Essa maldição  que  apareceu  estancou  o  progresso, barrando nosso caminho em direção ao divino. A revolução  é  uma  doença  contagiosa  e  a  Europa prejudicou-se  a  si  própria  negociando  com Moscou,  como  já  tinha  prejudicado  as  outras regiões do mundo. O Grande Espírito colocou em nossas  vidas  o  Karma,  que  não  conhece  nem  a cólera,  nem  o  perdão.  Ele  regula  nossa contabilidade, e o resultado será a fome, a destruição,  a  morte  da  civilização,  da  glória  e  da honra, o fim das nações, o fim dos povos. Posso até  vislumbrar  esse  horror,  essa  tétrica  e  louca destruição da humanidade.

[...]

— Você  tem  certeza  que  não  vai  se  entediar? Muito  bem,  vou  continuar  minha  história,  não tenho muito a acrescentar, porém vai ser a parte mais interessante.

— Já disse a você que era minha intenção fundar uma  milícia  budista  na  Rússia.  Por  quê? Para proteger  a  evolução  da  humanidade  e  lutar contra  a  revolução:  estou  convencido  de  que  a evolução leva à divindade, enquanto a revolução só pode levar à bestialidade. Quanto trabalhei na Rússia!  Na  Rússia  os  camponeses  são  gente grosseira,  iletrados,  continuamente  levados  por acessos  de  cólera,  odiando  tudo  e  a  todos  sem nem  saber  porque.  São  desconfiados  e materialistas;  não  possuem  qualquer  ideal.  E  os intelectuais vivem num idealismo imaginário que carece  totalmente  de  realidade.  Eles  tendem  a criticar tudo mas não possuem energia criadora. Eles  não  têm  força  de  vontade;  só  sabem  falar, falar,  falar!  Como  os  camponeses,  também  os intelectuais não  gostam de nada  e  de  ninguém. Seus  sentimentos  são  completamente imaginários,  seus  pensamentos  passam  sem deixar  vestígio,  palavras  vazias.  Meus companheiros evidentemente começaram logo a transgredir  o  regulamento  da  ordem.  Então  ordenei  que  o  celibato  fosse  obrigatório,  assim como  a  abstenção  total  de  contato  com mulheres, dos confortos da vida e de tudo que é supérfluo,  segundo  os  ditames  da  religião amarela,  Para  ajudar  os  russos  a  dominar  seus instintos,  mandei  que  eles  consumissem  álcool, haxixe e ópio em quantidades ilimitadas. Hoje eu mando enforcar os soldados que ingerem álcool; naquela  época,  porém,  nós  bebíamos quantidades  incríveis,  até  contrairmos  a  "febre branca", até o "delirium tremens". Não consegui manter  a  ordem,  mas  agrupei  à  minha  volta trezentos  homens  nos  quais  eu  tinha  instilado uma  audácia  extraordinária  e  uma  ferocidade sem limites. Durante a guerra contra a Alemanha eles  portaram-se  como  heróis,  e  tiveram  a mesma  atuação  contra  os  bolcheviques.  Restou apenas um pequeno grupo.

[...]


— Durante a guerra vimos como o exército russo estava  sendo  aos  poucos  corrompido;  previmos que  a  Rússia  trairia  seus  aliados  e compreendemos  os  perigos  que  adviriam  da revolução.  Então  para  reagir  contra  tudo  isso, planejamos  reunir  os  povos  mongóis  que  não olvidaram  sua  antiga  fé,  nem  esqueceram  seus antigos  costumes, para  formar  um único Estado asiático,  composto  de  tribos  autônomas,  sob  a soberania  moral  e  jurídica  da  China,  pátria  da mais  antiga  e  da  mais  evoluída  civilização.  O  Estado compreenderia os chineses,, os mongóis, os  tibetanos,  os  buriats,  os  kirguizes  e  os calmucos.  O  Estado  devia  ser  material  e moralmente poderoso a fim de poder agir como uma  barreira  contra  a  revolução  e  poder preservar cuidadosamente a filosofia e a política do  respeito  à  pessoa,  sendo  esta  uma  célula daquele. Se a humanidade louca e corrupta continua  afrontando  o  espírito  divino  que  está  no coração  dos  homens,  a  derramar  o  sangue  e  a impedir  a  evolução  moral,  então  esse  Estado asiático  tem  por  obrigação  sustar  com  qualquer meio a marcha para a destruição e restabelecer a  ordem,  e  uma  paz  que  seja  estável  e duradoura.  Durante  a  guerra  essas  idéias  se propagaram  até  entre  os  turcomanos,  os kirguizes os buriats e os mongóis.

[...]

O  carro  corria  novamente  pela  planície,  descrevendo  uma  grande  curva  e  o  barão  estava tecendo considerações sobre a vida asiática, com aquela sua voz rude e nervosa.
— A Rússia traiu a França, a Inglaterra e a América quando assinou o tratado de Brest-Litovsk, e com  isso  trouxe  o  caos.  Naquela  ocasião decidimos  mobilizar  a  Ásia  contra  a Alemanha. Nossos  enviados  penetraram  na  Mongólia,  no Tibete,  no  Turquestão  e  na  China.  Foi  nessa mesma  época  que  os  bolcheviques  iniciaram  a matança  dos  oficiais  russos;  por  esse  motivo tivemos  que  abandonar  nosso  projeto  pan-asiático,  concentrando  todo  nosso  esforço  na guerra  civil.  Esperamos  que  mais  tarde tivéssemos a possibilidade de acordar a Ásia inteira,  e  devolver,  com  a  sua  ajuda,  o  reino  de Deus  e  a  paz  ao mundo  todo.  Estou  muito satisfeito  de  ter  contribuído  para  essa  obra, libertando a Mongólia.
Ficou algum tempo calado, refletindo.

— Alguns  dos  meus  associados  nessa  obra  não gostam de mim, pelo meu rigor e por aquilo que eles  denominam  de  minhas  atrocidades  — acrescentou tristemente. — Eles parecem não ter ainda  compreendido  que  não  estamos  apenas lutando  contra  um  partido  político,  mas  contra uma horda de assassinos, contra os destruidores da  civilização  contemporânea.  Por  que  os italianos  executam  os  anarquistas  que  jogam bombas?  Por  que  então  não  me  reconhecem  o direito  de  livrar  o  mundo  da  corja  que  quer destruir  a  calma  do  povo?  Eu,  descendente  de cavaleiros teutônicos, de cruzados e de corsários, só  reconheço  a  morte  como  castigo  adequado para  os  assassinos!... 

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