sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O Estúpido Século XIX (por Léon Daudet)

Durante a Idade Média, o intelecto da França expressou-se em uma incomparável escolástica - a qual estamos apenas começando a retornar - cujo grande mestre foi Tomás de Aquino; sua arquitetura expressou-se em nossas catedrais; seus movimentos públicos nas Cruzadas, cuja encarnação pessoal foi Joana d'Arc.  A Donzela de Orleans era verdadeiramente filha de um grande desabrochar de um idealismo marcial e religioso. 

Depois veio o Renascimento, personificado na França por três nomes: Francisco I, com sua comitiva de artistas, poetas e estudiosos, Rabelais e Montaigne. Embora esta época seja mais familiar para nós do que a Idade Média, ela está longe de ter revelado os seus segredos e hereditariedade. Pois não foi a redescoberta de Aristóteles por São Tomás de Aquino a fonte do Renascimento?


Depois veio a Reforma, com Lutero e Calvino - o embrutecimento do intelecto europeu pela negação dos milagres e, por fim, a deificação do instinto e da ganância bruta. A Reforma deu à luz a Rousseau em Genebra e Kant em Königsberg. Este último destruiu a razão ocidental, privando-a de seus fundamentos realistas através do que é chamado de crítica transcendental, e negando a necessária correspondência entre a coisa e a ideia, entre o mundo objetivo e o subjetivo.

Na sequência da Reforma veio a Revolução Francesa, inspirada diretamente por Rousseau e os enciclopedistas. Este episódio abrangeu o final do século XVIII e o sangrento amanhecer do século XIX. Examinemos agora este último século. Sua infância e juventude foram entre 1806 e 1815,  o auge de sua vida veio em 1848, começou a mostrar sinais de idade em 1870, e foi moribundo entre 1900-1914. Devemos incluir em nosso exame o intervalo entre a ameaçadora e sombria Exposição Universal de 1900 e a Guerra Mundial, bem como o seu período de incubação entre o Diretório e o Império. Séculos são como pessoas; têm tanto um elemento original e um hereditário em si, um eu e um eles. 

Na França, o que o século XIX herdou da Idade Média? Absolutamente nada. O século XIX prosseguiu uma filosofia do conhecimento - isto é, uma metafísica - sem encontrá-la. Por kantismo temos o inimigo do conhecimento, uma vez que nega seu mecanismo essencial, adoequatio rei el intellectus. O século XIX não tinha arquitetura, que era a prova visível de sua pobreza de espírito e de profunda discórdia social entre o projetista criativo e o artesão. O século XIX não tinha movimento popular, no sentido em que usamos a palavra ao falar da Cruzadas e Joana d'Arc. Ele somente tinha matança. Vou lhe dizer por quê. Bonaparte era uma espécie de paródia blasfema das Cruzadas. Ele simbolizava uma cruzada para o nada.

Na França, o que o século XIX herdou do Renascimento? Quase nada. A ignorância foi propagada pela democracia chegando a corromper até mesmo o corpo docente. Quando o ensino fundamental dita sobre a universidade é um sinal inequívoco de decadência. Quando o mais baixo manda no mais alto, a hierarquia da mente e da matéria é invertida. Eu disse "quase" nada porque este século nos deu alguns estudiosos e pensadores, - notadamente, Auguste Comte, Fustel de Coulanges, Quicherat, Longnon e Luchaire, - herdeiros desse espírito sublime que busca as causas das coisas, e que durante o século XVI cultivaram-se pela comunhão com os antigos. Ele também nos deu alguns pintores, como a escola de Fontainebleau, e escultores como Rude, Puget, Carpeaux e Rodin, que foram preenchidos com o fogo divino de Roma e de Atenas.

Na França, o que o século XIX herdou da Reforma e de sua filha sanguinária, a Revolução? Muito. Melhor dizendo, tudo. Eu compararia a Reforma e a Revolução a uma imensa barreira de rocha, obstruindo a entrada do século XIX na França e evitando a entrada de luz do passado; assim, nossas gerações tardias foram forçadas a sentir pelo tato.

Sim, mas há a Ciência, com C maiúsculo. O século XIX foi construído para a ciência, laboratórios e fábricas, os dois grandes instrumentos do progresso.

Demonstrarei em outra ocasião o quão frágil é grande parte da nossa ciência, - tão efêmera quanto os insetos que se reproduzem e morrem na superfície de uma poça, - e quão prejudicial é o remanescente. Não pretendo proclamar a insolvência, a falência da ciência, como o maluco Brunetiere faz em seus trabalhos pesados, contraditórios e dogmáticos. Não pretendo negar certos benefícios estáveis e positivos que surgiram da efervescência científica entre 1860 e 1914. Mas, proponho mostrar o outro lado dessa conquista - a transformação dos laboratórios e fábricas, nas mãos dos políticos malucos, em armas contra a raça humana, a quem estas instituições supostamente deveriam servir. A verdadeira ciência, que transcende os laboratórios e a fábricas, não é filha de ontem, como os intelectuais tolos e deturpadores que dificultaram a passagem do século XIX, tão carinhosamente acreditam. A matemática superior, e as leis astronômicas que elas expressam, eram conhecidos pelos egípcios, cujos monumentos provaram também a posse de um conhecimento extraordinário da mecânica. Mas um saber da mecânica implica um conhecimento da física e da biologia.

A navegação de uma embarcação a vela é uma ciência. A fabricação de pão é uma ciência, e envolve um conhecimento de fermentação e suas leis muito antes de Pasteur. A produção de vinho é uma ciência e, da mesma forma, utiliza conhecimentos sobre fermentos. 

Estas descobertas não foram obra de um grupo de homens, não tão diferentes dos nossos provérbios, canções e lendas populares. Elas nos dadas por homens de gênio, cujos nomes e outras descobertas foram perdidas ou esquecidas. O mesmo vale para a extração de metais, a tecelagem, a elaboração de leis, a construção de estradas e aquedutos, e as mil outras artes que se tornaram parte integrante da nossa civilização. Nenhuma das descobertas das quais o século XIX é tão orgulhoso, possuem o caráter de ser perene e consubstancial com a vida civilizada. Sabemos que a ciência da eletricidade pode ser perdida e desaparecer por um curto-circuito mental. Nossa química atual - em constante transformação - é codificada por uma agonizante tortura de hipóteses mutualmente destrutivas sobre átomos. O próprio fundamento da teoria de Pasteur está se desintegrando; e os nossos recipientes com soros e antitoxinas estão se perguntando se os micróbios se tornaram imunes aos métodos do passado.  Em resumo, parece que a estabilidade das descobertas é inversamente proporcional à sua frequência e facilidade, e que a natureza exige tempo e deliberação.


Agora, a pressa demasiada é uma característica do século XIX, assim como também o acanhamento e o preconceito. Esta pressa, que é prejudicial para os trabalhos mentais como também para os do corpo, tem aumentado constantemente desde 1800 até 114 anos depois, assumindo que o século seguinte, realmente começou com a primeira Batalha de Marne. Este excesso de pressa tem um lado bom. Isso nos deu as ferrovias, os navios a vapor, o telégrafo, os automóveis, os telefones e todas as outras órgãos de velocidade. Mas estes eram meras coisas físicas. No mundo mental a precipitação tem sido perniciosa. Faz-nos supor que aqueles problemas que ainda estão nos primeiros estágios de solução já foram liquidados e decididos; que as instituições detestáveis e defeituosas são perfeitas e imutáveis; que as reputações usurpadas são imortais. Nestes tempos degenerados, a fabricação de uma falsa glória tornou-se uma indústria comum, testemunhados isso nos estúpidos monumentos que sobrecarregam os nossos parques e praças, e nos nomes tolos que nossas ruas são batizadas.

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