sábado, 15 de março de 2014

A Herança Positivista na Economia Moderna (por John Gray)

Nenhum dos economistas clássicos acreditava que a matemática deveria ser modelo de alguma ciência social. Para Adam Smith e Adam Ferguson, a economia baseava-se na história. Estava inextricavelmente ligada ao surgimento e ao declínio das nações e à luta pelo poder entre diferentes grupos sociais. Para Smith e Ferguson, a vida econômica só pode ser entendida pelo exame desses acontecimentos históricos. De um modo diferente, o mesmo vale para Marx. Desde o surgimento do positivismo nas ciências sociais, esta tradição praticamente desapareceu.

O desencaixe entre a economia e a história levou a um irrealismo generalizado na disciplina. Os economistas clássicos sabiam que as leis do mercado são apenas condensações do comportamento humano. Como tais, têm limitações de todos os tipos de conhecimento histórico. A história demonstra uma boa regularidade do comportamento humano. Também mostra a variedade suficiente para tornar a busca de leis universais um esforço inútil. É duvidoso que várias formas de estudos sociais contenham uma única lei que esteja no mesmo nível daquelas das ciências físicas. Mas em anos recentes as “leis da economia” tem sido invocadas para sustentar a ideia de que um estilo de comportamento – a variedade do “livre mercado” encontrada de modo intermitente nos últimos séculos num punhado de países – deveria ser o modelo para a vida econômica por toda parte.

A teoria econômica não pode demostrar que o livre-mercado seja o melhor tipo de sistema econômico. A ideia de que os mercados livres constituem o modo mais eficiente de vida econômica é um dos pilares intelectuais da campanha por um livre mercado global, mas há muitas formas de definir eficiência, nenhuma delas desprovida de valor. Para os positivistas, a eficiência de uma economia media-se em termos de sua produtividade. Com certeza o livre-mercado é mais produtivo. Mas como Saint-Simon e Comte entendiam muito bem, isso não significa que seja humanamente satisfatório.

A ideia que o livre-mercado deveria ser universal só faz sentido caso se aceite uma determinada filosofia da história. Sob o impacto do positivismo lógico, a economia transformou-se numa disciplina totalmente não histórica. Ao mesmo tempo, incorporou uma filosofia da história que deriva de Saint-Simon e Comte.

Segundo o positivismo, a ciência é o motor da mudança histórica. A nova tecnologia expulsa os modos ineficientes de produção e engendra novas formas de vida social. Este processo está em ação no decorrer da história. Seu ponto final é um mundo unificado por um só sistema econômico. O resultado extremo do conhecimento científico é uma civilização universal, governada por uma moralidade secular, “terrestre”.

Para Saint-Simon e Comte, tecnologia significava ferrovias e canais. Para Lenin, eletricidade. Para os neoliberais, Internet. A mensagem é a mesma. A tecnologia, aplicação prática do conhecimento cientifico, produz uma convergência de valores. Este é o mito básico moderno, que os positivistas propagaram e todos hoje aceitam como fato.

De certa maneira, os positivistas eram mais sábios que seus discípulos do século XX. A ideia de que a produtividade máxima é o objetivo da vida econômica é uma das heranças mais generalizadas e perniciosas do positivismo; mas é uma ideia que Saint-Simon e Comte não sustentaram o tempo todo. Sabiam que os seres humanos não são apenas animais econômicos. Conforme a expansão do conhecimento se acelera, acreditavam, a manutenção dos laços sociais, torna-se ainda mais necessária.

Em seu lado melhor, Saint-Simon e Comte não eram dogmáticos. Sabiam que a vida humana é extremamente complicada, tanto que o que é bom numa sociedade pode ser ruim em outra. Como Voltaire, compreendiam que no mundo real da história humana o melhor regime não é o mesmo por toda parte. Na prática, se não na teoria, os positivistas aceitavam que existe mais de um modo de ser moderno. 

Falta aos arquitetos do livre-mercado global este sábio relativismo político. Para eles, apenas a irracionalidade impede que o melhor regime se torne universal. Ainda assim, o mundo que imaginam estar construindo é, inegavelmente, aquele vislumbrado pelos positivistas. Num trecho famoso do final de sua Teoria Geral (1936), Keynes escreveu:



(...) as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, quando estão certos e quando estão errados, são mais poderosas do que em geral se acredita. Na verdade, o mundo é governado por pouca coisa a mais. Os homens práticos, que se consideram isentos de quaisquer influências intelectuais, costumam ser escravos de algum economista falecido. Loucos com autoridade, que ouvem vozes no ar, estão destilando o frenesi de algum escrivão acadêmico de alguns anos antes.


Keynes escrevia numa época em que a política pública era governada por teorias econômicas desatualizadas. Hoje ela é governada por uma religião falecida. Vincular figuras exóticas como Saint-Simon e Comte aos burocratas insípidos do Fundo Monetário Internacional pode parecer fantasioso, mas a ideia da modernização a qual o FMI adere é uma herança positivista. Os engenheiros sociais que labutam para instalar mercados livres em cada cantinho perdido do globo veem-se como racionalistas científicos, mas na verdade são discípulos de um culto esquecido.


John Gray em "Al-Qaeda e o que significa ser moderno"

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