terça-feira, 19 de novembro de 2013

A Decadência do Ocidente: As Culturas como Organismos

Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir em maio ao informe; quando algo limitado, transitório, originar-se no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, ao qual se apega, como uma planta. Uma cultura morre, quando essa alma tiver realizado a soma de suas possibilidades, sob a forma de povos, línguas, dogmas, artes, Estados, ciências, e em seguida retorna à espiritualidade primordial. Mas a sua existência viva, aquela série de grandes épocas, cujos rígidos contornos designam o progressivo arremate, é uma luta íntima, profunda, passional, com o objetivo de afirmar a ideia contra as forças do caos, no exterior, e contra o inconsciente, no interior, para onde elas se retiram, agastadas. Não somente o artista luta contra a resistência da matéria e aniquilamento da ideia. Todas as culturas encontram-se numa realização simbólica, quase mística, à extensão, ao espaço, dentro do qual e por meio do qual tencionam realizar-se. Alcançando o destino, realizada a ideia, a totalidade das múltiplas possibilidades intrínsecas, com a sua projeção para fora, fossiliza-se repentinamente. Definha-se. Seu sangue coagula. Seu vigor diminui. Ela se transforma em civilização. Eis o que sentimos e depreendemos das palavras “egipticismo”, “bizantinismo”, “mandarinato”. Talvez seja tal cultura ainda capaz de estender durante séculos e milênios seus galhos mortos ao alto, igual a uma árvore gigantesca, ressequida na mata virgem. É o que observa na China, na Índia, no mundo islâmico. A civilização “antiga” da fase imperial erguia-se, gigantesca, com aparente vigor e exuberância juvenil; mas, na realidade, o que fazia era privar de ar e de luz a jovem cultura árabe do Oriente. 

Este é o sentido de todas as decadências na História, da conclusão íntima e externa, do acabamento que, inevitavelmente, aguarda qualquer cultura viva. A que mais nitidamente se nos depara, quanto aos seus contornos, é a “decadência da Antiguidade”. Mas já podemos perceber com absoluta clareza, tanto dentro de nós como ao nosso redor, os primeiros sinais de um acontecimento perfeitamente semelhante, no que se refere à sua duração e ao seu transcurso, e que ocorrerá nos séculos iniciais do próximo milênio. Trata-se de nossa própria decadência, da “decadência do Ocidente”. 

Cada cultura percorre fases de envelhecimento iguais às da vida do indivíduo. Todas elas têm sua infância, sua adolescência, sua virilidade e sua velhice. Na aurora das épocas românticas e góticas, revela-se uma alma mais jovem, tímida, prenhe de sentimentos. Era ela que enchia a paisagem faustiana, desde a Provença dos trovadores até a catedral de Hildesheim, construída pelo Bispo Bernwar Soprava ali uma aragem primaveril. [...] Quanto mais uma cultura se avizinhar do meio-dia da sua vida, tanto mais viril e austera, mais disciplinada, mais saturada, tornar-se-á a consciência da sua força, e suas características delinear-se-ão com crescente nitidez. Então, na plenitude íntima da madureza de seu gênio criador, todos os detalhes da expressão parecerão selecionados, sérios, comedidos, cheios de admirável leveza e espontaneidade. Nessa fase ocorrerão em toda parte momentos de brilhante perfeição. Posteriores ainda, mais delicadas, quase frágeis, impregnadas de melancólica doçura dos últimos dias de outubro, são obras como a Afrodite de Cnido, o pórtico das Cariátides do Erection, os arabescos dos arcos de ferradura dos sarracenos, o castelo de Dresde, as teclas de Watteau, a música de Mozart. Por fim, na decrepitude da incipiente civilização, extinguir-se-á o fogo da alma. Mais uma vez com vigor diminuto e êxito incompleto, a inspiração decrescente ousará empreender uma criação grandiosa. É o caso do Classicismo com o qual topamos em todas as culturas agonizantes. A alma torna a recordar-se tristemente – no Romantismo-  da sua infância. Enfim cansada, sorumbática, fria, perde a vontade de viver e anela – assim como aconteceu na época dos imperadores romanos – abandonar a luz milenar, para mergulhar, outra vez, nas trevas místicas dos estados primitivos, no seio materno, na sepultura. Nisso reside o encanto da “segunda religiosidade”, que os cultos de Ísis, de Mitra e do Sol exerciam sobre os homens da última fase da Antiguidade, esses mesmos cultos que uma alma recém-despertada, no Oriente, acabava de encher de inusitado fervor, como primeira manifestação sonhadora, angustiosa, da sua solitária existência neste mundo. 

Oswald Spengler, em "A Decadência do Ocidente"

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